AÉCIO E UMA CURIOSA FORMA DE CINISMO ARISTOCRÁTICO

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Como candidato sintetizou, numa frase, um interessante estratagema das elites. Implica fingir desapego ao dinheiro — mas cuidar para que toda a estrutura de desigualdade e privilégios se mantenha… 

Aécio e uma curiosa forma de cinismo aristocrático


Por Leonardo Gomes Nogueira, editor de Supressão dos Costumes Selvagens Imagem: George GroszOs Pilares da Sociedade (1926)

Aécio Neves diz, com orgulho, que quando foi governador de Minas Gerais teria aberto mão de metade do seu salário. “Eu precisava dar o exemplo”, diz o candidato. Não vou entrar no mérito se isso é verdade ou não. A questão não é essa. A questão é avaliar o que estaria por trás desse discurso, aparentemente, nobre.
O que o candidato está querendo dizer, nas entrelinhas, é o seguinte: se você fosse uma pessoa de bem, desapegada como eu sou, faria o mesmo. Ou ainda: o salário não é tão importante assim, gente! Esqueçam isso! O uso da palavra “exemplo” não é por acaso.
Aécio pode abrir mão da metade ou até integralmente do seu salário. Não tenho dúvida de que ele possa fazê-lo. Pois Aécio, mais do que uma pessoa de bem, é uma pessoa de bens. Ele não depende, nem nunca dependeu de salário pra pagar as suas contas. Ele, como se sabe, é um herdeiro.
Se você não é herdeiro, desconfie desse discurso de aparente austeridade que coloca o ônus de muitos dos nossos problemas nas costas de quem vive de salário. E não estou falando dos grandes salários da República Federativa do Brasil.
Juízes federais conseguiram, recentemente, o direito de receber auxílio-moradia de cerca de 4 mil reais por mês (inclusive, o mais absurdo da história, magistrados que atuam na cidade de origem e que possuem residência própria). Se quiser saber mais um pouco sobre o tema, clique aqui. Eles ganham de auxílio o que eu não ganho de salário. Repito: não estou falando desse tipo de aberração, falo de gente comum; sem rendas vultosas ou amigos no judiciário.
O aparente desprezo de Aécio por essa coisa chamada dinheiro tem, obviamente, muitas leituras possíveis. Algumas ocultas e outras evidentes. Uma delas, e cada um decidirá se isso estaria oculto ou bastante evidenciado, é criar uma justificativa moral para o arrocho alheio.
Não é por acaso que Aécio já nomeou, por antecipação, o seu futuro ministro da Fazenda (caso ganhe a eleição, é claro). Armínio Fraga é um notório gerente de fortunas especulativas. E pelos “bons” serviços prestados, para gente como George Soros, se tornou um homem rico.
“O salário mínimo cresceu muito ao longo dos anos”, disse Fraga. Ele defende que o salário, todo o salário e não apenas o mínimo (pense nisso, caso você imagine que isso não te diz respeito: TODO o salário), deve guardar “alguma proporção com a produtividade”.
Se aceitar essa premissa, me sentirei obrigado a perguntar: e o lucro? Ele também deve estar amparado na produtividade? Deve ter algum vínculo com a realidade que o cerca? Não foi o que vimos na Europa ou Estados Unidos nos últimos anos. A despeito de um cenário de recessão (ou algo próximo disso), os lucros ficaram protegidos do mundo real que eles ajudaram a devastar. Mas sobre lucro Armínio Fraga não especula, é claro.
Gustavo Ioschpe, “especialista” em educação de uma certa “revista”, escreve (a cada greve) pedindo que os professores abandonem a sua “obsessão” por essa coisa grotesca chamada salário. Ioschpe, curiosamente, tem a mesma obsessão, da qual ele acusa os outros, por esse ponto específico de um debate tão amplo e complexo como é o da educação.
É luminoso notar que o moço, que assim como Aécio prega o desprendimento alheio, é um homem muito rico. Ele herdou o dinheiro do papai e agora usa o seu tempo livre pra disseminar o seu desprezo por essa coisa que ele tem aos montes.
Além da violência costumeira, parte dos ricos possui uma estratégia inteligente pra manter a vergonhosa concentração de renda no Brasil mais ou menos inalterada: dizem que dinheiro não é importante, mostram até certa repulsa por ele. É uma tática diversionista cínica, mas eficaz.
Os ricos, ao menos uma parte deles, darão milhões de motivos pra justificar a desigualdade social no país (que ainda é brutal). A concentração de muito, mas muito dinheiro nas mãos de uns pouquíssimos iluminados, obviamente, nunca terá relação alguma com isso. Embora essa pareça, exatamente, a raiz ou origem do problema.
Os mais despudorados ainda dirão que não existe essa coisa de “classe social”, que todo mundo é brasileiro e que, por isso, todos teríamos os mesmos objetivos. Ou seja: o dono do banco e o caixa do banco teriam os mesmos interesses na visão (totalmente desinteressada, é claro) dessa gente. Os mais espertos, por outro lado, dirão que somente com educação de mais qualidade e tal é que a desigualdade irá diminuir.
Não nego que uma melhor formação, possa ajudar nós, plebeus, a conseguirmos um trabalho mais bem pago. Mas nem a pessoa mais educada (do ponto de vista formal) poderá fugir da lógica vigente que é: rico paga menos e pobre mais imposto no Brasil. Essa distorção sacana, além de outras, é claro, é essencial pra entendermos a desigualdade em nosso país.
Países como a Suécia e a Dinamarca, sempre apontados como modelo de tudo que é bom, bonito e limpo, muito antes de criarem um sistema educacional universalizado e de qualidade, já tinham tomado medidas no sentido de diminuir as suas desigualdades sociais.
No Capítulo 8 de A Era das Revoluções (1789 – 1848), o historiador Eric Hobsbawm, com base em muita pesquisa e não em achismo (essa “ciência” tão frequente hoje em dia), escreveu que reformas da década de 1780 “aboliram o feudalismo na Dinamarca” e que por volta de 1865 esse país era, primordialmente, “de proprietários camponeses independentes” (página 246).
“Na Suécia, reformas semelhantes, porém menos drásticas, tiveram os mesmos efeitos”, garante Hobsbawm (páginas 246 e 247). Isso não significa, é claro, que os cidadãos desses países já gozassem do padrão de vida que alcançariam a partir da segunda metade do século XX.
A terra, como lembra o historiador no início do capítulo de mesmo nome, era, sem dúvida, a principal fonte de riqueza da época. “O que acontecia à terra determinava a vida e a morte da maioria do seres humanos entre 1789 e 1848”, nos lembra, na página 240, o extraordinário historiador britânico.
Esses dois países, que sempre aparecem muito bem colocados nas listas das nações com os melhores padrões de desenvolvimento, fizeram a monstruosa e temida reforma agrária há muito tempo. E como se pode ver nos dias atuais, isso levou Suécia e Dinamarca ao caos. Essas informações podem ser encontradas na 25ª edição do livro já citado (editora Paz e Terra).
Obviamente, muito da riqueza europeia é fruto do saque, inclusive ao nosso país, mas essa é outra história. O importante aqui é demonstrar que, independente do volume ou extensão dessa riqueza, os aristocratas suecos e dinamarqueses foram obrigados, pelos seus respectivos povos, ainda no século XIX, a começar a dividi-la.
Mesmo essa coisa bolivariana chamada Estados Unidos começa a sua reforma agrária em 1862. A lei que determinou isso, sancionada em 20 de maio daquele ano pelo presidente Abraham Lincoln, partia da ideia de que a terra é de quem a ocupa e trabalha nela. Para mais informações, recomendo um curto e didático texto publicado no Opera Mundi (aqui).
Nesse processo, não custa lembrar, os estadunidenses desconsideraram e massacraram os índios, que já ocupavam e trabalhavam (sem dar esse nome ao que faziam) essas mesmas terras que seriam divididas entre os recém-chegados. Além disso, os EUA presenciariam um retrocesso desse modelo ao longo do século XX.
Aécio, voltemos ao “abnegado”, pode se dar ao luxo de abrir mão de coisas mundanas como o salário. O faz como suposto exemplo de retidão. Soa, pra mim, como puro cinismo. Vou usar um termo um pouco antigo em desuso: Aécio é um demagogo.
Ele faz um voto de pobreza de mentirinha. Bem diferente do de São Francisco de Assis (que, de fato, abriu mão das suas posses). É uma estratégia baixa. Repugnante até: pretende ficar só com o voto, mas sem a pobreza.

Fonte:http://outraspalavras.net/blog/2014/10/26/aecio-e-uma-curiosa-forma-de-cinismo-aristocratico/

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