POLÍTICA PÚBLICA E SOCIAL DIANTE DO CRACK : CRÍTICA E BUSCA DE SOLUÇÕES

Samuel tem o sonho de ter um salão de beleza.
Samuel tem o sonho de ter um salão de beleza.

Crack: o que a internação compulsória não muda


Reportagem na região da Luz revela: usuários querem deixar a droga, mas condenam os que “te prendem, te dão um monte de remédio, te deixam lesado e não cuidam de nada”


-Você fuma cigarro, não fuma?
-Fumo
-Você sabe como é a abstinência de cigarro, não sabe?
-Sei
-Já pegou bituca no chão pra fumar, não pegou?
-Sim
-Isso com cigarro. Agora imagina uma sensação 100 vezes pior. Isso é o crack.
O diálogo se deu quando já passava das 9h de domingo, cerca de 4 horas depois que chegamos a um dos locais mais controversos de São Paulo: a Cracolândia, no bairro da Luz. Um lugar no centro antigo da cidade, cheio de prédios vazios, cortiços, ocupações, catadores, moradores de rua e, claro, usuários de crack. Há cerca de um ano atrás, o então prefeito Gilberto Kassab intensificou o patrulhamento na região da rua Helvétia, antigo foco de venda e utilização de crack nas madrugadas paulistanas.
Foi a alguns quarteirões dali que encontramos Thiago. De Salvador, ele já serviu o exército, trabalhou em uma ONG e hoje vive na rua. “Já tem um ou dois anos, não me lembro direito”. Com hematomas nos dois joelhos, no peito, nas mãos, no rosto e com pontos na parte de trás da cabeça, ele conta como a Polícia o espancou depois que ele negou entregar R$ 20,00 que possuía só porque foi encontrado com algumas pedras da droga. “Minha ficha tá limpa, nunca fui acusado de nada”. Ele se diz arrogante.
O crackeiro, nóia, mendigo – ou qualquer outro nome preconceituoso rapidamente associado ao usuário “padrão” de crack – foi o último que entrevistamos, um dia antes de o governo federal dar início ao programa “Crack, é possível vencer”, que destinará R$ 4 bilhões para combater a droga. O destino do dinheiro traz à tona uma série de debates marginais relacionados à questão. Na mesma semana, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, se mostrava a favor da internação compulsória de usuários.
“Não adianta!”, diz Jefferson, firme e seguro, quando perguntado sobre a internação forçada. “Eles te levam pra uma clínica, te prendem, te dão um monte de remédio que te deixa lesado e não cuidam de nada”. Usuário há cerca de 20 anos, ele teve oportunidade de estudo, foi adotado aos 3 anos, tem uma filha da qual, com os olho marejados, diz sentir muita falta, e conta como começou a usar a pedra: “eu lembro da primeira vez que botei essa fumaça na minha boca, eu ainda era um pivete. Foi um barato, eu tava em casa curtindo um rock. Tava tocando Smashing Pumpkins na MTV, cara, foi um barato”. Ele diz sentir muita falta de um psicólogo quando perguntado como o governo poderia ajudar as pessoas naquela situação. “Meus pais eram ricos, cara. Daora. Nunca me faltou nada, só carinho.”
Tudo isso se passava em frente à estação da Luz, onde poucos quarteirões à frente centenas de pessoas ocupavam as ruas com cachimbo nas mãos e sem nenhuma menção de dormir. Alguns estranhavam nossa presença, outros já procuravam se enturmar. Todos os dias, essas pessoas enfrentam o que alguns deles chamam de inferno. A falta de banheiro, o olhar de desprezo das pessoas, a saudade da família, as más condições de higiene, a falta de opções de recuperação saudável, o tratamento da polícia e da Guarda Municipal, estão entre os fatores apontados pelos usuários como agravantes de suas condições.
“Isso aqui é um jogo louco. Quem nunca experimentou e não sabe a reação dessa maldita droga, que não experimente. Se eu soubesse que era assim, nunca tinha colocado um cachimbo na boca”. Quem dá a declaração é Anderson, que não se mostra esperançoso com tudo que acontece ali. “O que me machuca mais é essa molecada, que não tem passado, não tem história, tá estragando tudo desde o começo. Eu trabalhei com artesanato, já fiz de tudo na vida, só não matei nem me prostituí”. Ele carregava um conjunto de 5 ferramentas na mão, e dizia que iria tentar trocar pra comprar mais pedra, e se emociona muito conforme a conversa avança. Lembra do término de seu casamento, fala sobre sua filha e como voltaria atrás se pudesse. “Eu sou carpinteiro. Me dá um lugar pra trabalhar, me dá uma perspectiva”.
Entre conversas em off e conversas gravadas, os moradores da região aos poucos se abrem e falam sobre os 800 usuários que sumiram após a operação da Polícia há mais de um ano, a ação dos agentes locais de saúde e seus anseios e sonhos pessoais, a maioria genuinamente altruísta. Ninguém fez menção de roubar a nossa câmera, e se mostravam muito mais lúcidos e embedecidos de realidade do que com aspecto de ansiedade, degeneração ou loucura que muitos costumam prever nos ocupantes da região.
O Lado B da situação do crack no país envolve olhar para o problema de forma livre, e iniciar uma revolução muito mais profunda do que a criação de um centro de recuperação. A especulação imobiliária, a militarização excessiva da Polícia, a abordagem da mídia e o próprio olhar torto da sociedade ainda contribuem e muito para que o debate não avance.
“Se eu pudesse voltar atrás eu teria evitado o crack. preferiria ser um zé povinho, um nerd ou algo do tipo. Mas, desejaria a sabedoria e a malícia que eu tenho hoje.”
Há quem diga que a droga foi feita para matar mendigos. Se sim, cumpre esplendidamente e simbolicamente a missão.

Crack: internação compulsória fracassa também no Rio


Reportagem revela centros de internação precários, métodos rudimentares, abusos e índice muito baixo de fim da dependência

Por Francisco Alves Filho, em Carta Capital

O volume de trabalho de Celso Ferreira, 45 anos, funcionário da Prefeitura do Rio de Janeiro, aumentou muito no último ano. Contratado para um cargo de título pomposo, “educador social”, ele é uma das 50 pessoas cuja função é ir às chamadas cracolândias da cidade para recolher os usuários de crack e levá-los para abrigos municipais. Depois de criar um “Protocolo de Abordagem Social”, no início de 2011, a prefeitura passou a internar compulsoriamente crianças e adolescentes viciadas.
“A quantidade de meninos recolhidos aumentou bastante. Gosto do que faço, é preciso recuperá-los”, diz Celso, evangélico fervoroso. Mais precisamente, foram 544 nos últimos 12 meses. Apesar da boa intenção de funcionários como ele, a iniciativa da Prefeitura do Rio é alvo de polêmica e sérias contestações. A eficácia do tratamento iniciado com uma internação obrigatória é questionada por muitos especialistas, defensores de uma abordagem baseada no convencimento e no apoio familiar.
“Lugar de criança não é na rua. Se não quero isso para o meu filho não quero nenhum menino ou menina”, diz o secretário de Ação Social, Rodrigo Bethlem, encarregado da tarefa.  Apesar da convicção de Bethlem, o percentual de sucesso não pode ser considerado alto (28,16%) e a veracidade dos dados tem sido contestada. Em cidades como Porto Alegre, Salvador e Recife, consultórios montados na rua se colocam como alternativa a esse tipo de abordagem. O Brasil ainda busca a metodologia ideal para combater o flagelo do crack.
A rotina dos funcionários que recolhem os menores para internação compulsória se parece com um jogo de gato e rato. Nas operações freqüentes, feitas geralmente em locais perigosos pela proximidade com o tráfico, eles assistem a muitos viciados fugirem em debandada assim que suas vans estacionam.
Quando conseguem se aproximar de algum jovem usuário de crack, gastam um bom tempo conversando. “Tentamos fazer ele ir por vontade própria, para evitar levar pelo braço”, conta Celso. A maioria escapa, há quem arremesse pedras contra os veículos, mas algumas crianças e adolescentes alcançados pelos funcionários acabam levados para as vans. “Com o tempo, notamos a diminuição de meninos nessas cracolândias, uma prova de que estamos avançando”, diz Betlem.
São muitos os especialistas que acham o contrário. “A internação compulsória pode ser indicada para alguns casos, são exceções e não a regra”, acredita Pedro Abramovay . Ele reconhece, no entanto, que a ação da prefeitura do Rio tem o benefício de seguir os parâmetros da saúde e da ação social e não da captura policial, como ocorre em São Paulo. “As instalações para onde são levadas essas crianças, porém, têm métodos e aparência de prisão, são inadequadas para o tratamento”.
Uma das críticas mais assíduas a esses abrigos é a presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ, Margarida Pressburger. Ela esteve em janeiro no abrigo Casa Viva, de Laranjeiras, e não gostou nada das condições do lugar, um pequeno prédio de dois andares. “A médica e a psiquiatra fazem plantão apenas uma vez por semana, durante três horas”, relata a advogada.
Além disso, segundo Pressburger, as crianças estavam completamente ociosas, sem um livro, uma televisão ou uma bola para ocupá-las.  O uso de remédios de tarja preta foi constatado. “Uma das meninas se mostrava completamente apática, sem reação, e a psiquiatra do nosso grupo disse que ela estava dopada”, conta a integrante da OAB.
“Aquilo não devia ter o nome de Casa Viva, parece mais casa da morte”. A artista plástica Yvonne Bezerra de Mello, coordenadora de uma ONG para atendimento a crianças de rua, também esteve naquele abrigo. “Está longe de ser o tratamento ideal para crianças envolvidas com esse problema. Elas deveriam estar hospitalizadas”, opina.
Expoente da internação forçada, cidade coleciona casos de abusos
“Havia crianças fumando livremente e os funcionários alegaram ser uma alternativa para amenizar a dependência do crack”. Depois dessas duas visitas, a prefeitura informou ter implantado plantões diários de psicólogos e não é mais permitido fumar nos abrigos.
A reportagem de Carta Capital esteve no abrigo Ser Criança, no bairro de Guaratiba, na manhã de terça-feira 10. Diferente das instalações de Laranjeiras, ali o espaço é bastante amplo, com piscina, quadra de futebol e duas salas de tevê. Os quartos são pequenos, com beliches onde há vagas para quatro meninos.
O abrigo é dividido em área de crianças e de adolescentes. Naquela manhã, uma psicóloga atendia alguns abrigados e 17 crianças participavam de uma atividade lúdica. Aos 14 anos, o garoto M.A. está prestes a completar 11 meses no abrigo. Antes dali, não passava um dia sem crack e chegou a pegar em arma na quadrilha de traficantes de drogas da favela Mandela, na zona norte carioca. “Depois de uma operação policial, eu resolvi pedir para ser internado”, conta ele.
Tratado com medicamentos, o próprio garoto diz estar com aparência bem melhor do que quando chegou e espera voltar para casa em breve. Esse retorno, que representaria o final do tratamento, pode, na verdade, se tornar um risco: enquanto o irmão foi preso algumas vezes e é usuário do crack,  a mãe, também viciada, fez apenas uma visita ao filho e não se mostra preocupada com o destino do garoto. “Com uma família desestruturada, é grande o desafio de manter o tratamento depois que o menino sai daqui”, diz Watusy Ramos, coordenadora do abrigo.
O setor destinado aos adolescentes é diferente da área das crianças. Ali está a quadra de esportes, mas o espaço é bem menor. Além disso, as instalações estão em pior estado, com infiltrações e mesas de plástico mal conservadas. Os banheiros são limpos, mas parecem não ter recebido acabamento, o que dá ao lugar um ar prisional – impressão acentuada pelo físico musculoso do educador que lidava com os jovens. Um deles, G. S., de 15 anos, foi levado ao abrigo pela família.
Também usa medicamentos para controlar as crises de abstinência e diz se sentir melhor. Tem, no entanto, uma reclamação grave: a agressividade por parte de alguns educadores. Seu colega, M.A. também diz que foi agredido por um “tio”. Tanto G.S. quanto M.A. reclamaram das agressões à coordenadora Watusy, que repreendeu os funcionários e, segundo os meninos, o problema não se repetiu.
Porcentual de êxito do método é de apenas 28,16%
“É preciso entender que o uso da droga é um ponto de partida, e não um ponto de chegada. O uso começa num ambiente tão ruim que a droga aparece como solução. A saída é dar resposta social para fazer com que a droga não seja mais necessária”, afirma Paulo Silveira, da ONG Respeito é Bom e Eu Gosto. “O programa do Rio é uma farsa na medida em que não tem nada a oferecer como instrumento de inclusão social.”
A denúncia mais contundente, no entanto, é feita por Monique Barbosa, mãe de J.A., de 12 anos. O garoto está de volta à casa desde janeiro, depois de passar quatro meses no abrigo de Guaratiba.  Inicialmente, ela elogia o trabalho e diz que o filho está recuperado do vício do crack graças àquele tratamento. “Desconfiava que não ia dar certo, mas foi melhor do que eu esperava. Mesmo depois da volta dele para casa, continuo recebendo apoio da prefeitura”, diz.
Do lado negativo, Monique também relata agressões. “Meu filho falou que alguns funcionários batiam nas crianças, outros acordavam  os meninos jogando água em seus rostos. Houve até um dos meninos, chamado Yan, que foi jogado na piscina com os braços amarrados e quase se afogou, foi retirado de lá desacordado”, relata. Depois que o filho contou essas cenas, presenciadas no final do ano passado, Monique levou o caso à coordenadora, que afastou o funcionário. Watusy reconhece que volta e meia é obrigada a lidar com o problema: “Fazemos cursos de qualificação e de reciclagem, mas há quem não saiba lidar com a agressividade dos jovens afetados pelo vício. Quando identifico algum esse tipo de comportamento, repreendo ou afasto a pessoa imediatamente”.
Consultado pelo secretário Bethlem antes do início do recolhimento compulsório, o psiquiatra Jorge Jaber vistoriou os quatro abrigos da prefeitura e aprovou tanto o espaço físico quanto a preparação dos educadores. “Vi gente abnegada, que se dedica ao seu trabalho”, afirma. No ano passado, voltou à Casa Viva e também gostou do que viu. Acha que é preciso avançar e reuniu-se com outros especialistas para levar à prefeitura sugestões que possam melhorar o atendimento, entre elas a criação de um instituto voltado para o tratamento de usuários de drogas.
Sobre a eficácia do tratamento feito depois de internação compulsória, ele não tem dúvida: “Fiz um estudo e concluí que nesses casos o sucesso pode chegar a 77% dos casos, superior ao constatado nas internações voluntárias”. Por esse padrão, o desempenho da prefeitura do Rio está baixo, pois não chega a metade desse índice. Integrante da ONG “Respeito é bom e eu gosto”, que denuncia os problemas do programa de internação compulsória, Paulo Silveira discorda profundamente de Jaber.
“O uso do crack começa num ambiente tão ruim que a droga aparece como solução. A saída é dar resposta social para fazer com que a droga deixe de ser necessária”, acredita Silveira. Ele classifica o programa do Rio como “farsa” na medida que oferece instrumento de inclusão social. “Cidadãos brasileiros estão sendo suprimidos de seus direitos. É um regime de exceção justificado pela guerra às drogas”.
Garoto é carregado por agentes
Outras capitais brasileiras seguiram um caminho bem diferente para lidar com o problema. Em Porto Alegre, a prefeitura criou consultórios na rua, onde é feito um atendimento permanente.
“Mesmo nos casos de crianças e adolescentes buscamos estabelecer um relacionamento de confiança e tentamos convencê-los a se tratar”, explica o secretário municipal de Saúde da capital gaúcha, Marcelo Bósio. Foram criadas comunidades de acolhimento, nas quais os garotos e garotas não perdem o vínculo familiar.
Para ele, a motivação do indivíduo é um forte elemento para a recuperação. “A internação compulsória não é eficaz, a vontade do usuário de se tratar é importante para a cura. Por isso, nunca optamos pela imposição”, afirma. Recife e Salvador têm experiências parecidas. Não se sabe, porém, se poderiam ser repetidas em megalópoles como Rio e São Paulo, onde o número de crianças e adolescentes viciados é muito maior. O método ideal para o Brasil, como se vê, está sendo testado na prática.

As bases da nova política para “cracolândia”



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Ao oferecer abrigo e ocupação a usuários da droga, prefeitura de S.Paulo adota postura gradualista apoiada em estudos científicos e experiências internacionais

Por Luís Nassif, em seu blog

No combate ao vício das drogas, há o tratamento compulsório, higienista, de prender e segregar os viciados; e o tratamento humanizado, chamado de “redução de danos”. Em vez de cortar imediatamente e compulsoriamente a droga, sujeitando o viciado a crises de abstinência – que quase sempre os traz de volta ao vício -, monta-se um tratamento gradativo, de redução gradual do consumo enquanto se trabalham o ambiente em que ele se encontra, as relações sociais e familiares, devolvendo-lhe a auto-estima..
No auge da onda ultraconservadora da mídia, o portal da revista Veja criminalizou os estudos de uma professora da USP, quase septuagenária, que orientava uma tese de doutorado sobre redução de danos. O tema mereceu repercussão no Jornal Nacional.
Não fosse a defesa enfática dos estudos pela FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) a carreira de ambas teria sido liquidada pelo sensacionalismo e haveria atrasos de décadas nos programas de combate ao vício.
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Nos anos seguintes, consolidou-se no centro de São Paulo o território livre da Cracolândia. Foram feitas duas tentativas coercitivas do governo do Estado, para acabar com o gueto. Os viciados apenas trocaram de local, espalhando-se por bairros próximos ao centro. Depois, voltaram para o lugar de origem.
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Foi essa sucessão de fracassos que levou o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, a buscar formas alternativas.
Em relação ao tratamento de viciados, a Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) divide-se em duas alas: a da internação compulsória, e outra de tratamento humanizado.
Reuniões com especialistas, como Dartiu Silveira, e a ousadia da Secretaria de Assistência Social, Luciana Temer, animaram Haddad a trilhar o caminho civilizatório, lançando a Operação Braços Abertos.
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A lógica do novo modelo é que o ambiente modela as pessoas. Ou seja, mantidos na Cracolândia, não haveria nenhuma possibilidade dos viciados se libertarem do vício. Colocados em locais dignos, com parte da dignidade recuperada, emergiriam outras pessoas
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Em um primeiro momento, espontaneamente os viciados saíram das ruas para hotéis, banharam-se, vestiram roupas limpas.
Uma ação conjunta das Secretarias de Assistência Social, da Segurança Urbana, e da Coordenação de Subprefeituras, mais a de Trabalho e de Saúde – em parceria com o governo do estado – criou a rede que será a base da reciclagem dos viciados.
Foram atendidos pelo serviços de saúde, para uma primeira checagem e ganharam empregos temporários no sistema de varrição da cidade, quatro horas de trabalho a R$ 15,00 por dia.
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Todos os passos do programa foram negociados diretamente com eles, inclusive a promessa de não mais voltarem para o local. Para tanto, Haddad abriu as portas da Prefeitura, expôs a proposta, ouviu as ponderações. De uma viciada ouviu a promessa: “Se eu largar o vício o senhor me garante emprego com carteira assinada?”.
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E o centro da cidade amanheceu em paz. No dia seguinte, jornalistas incrédulos testemunharam viciados ajudando a limpar a cidade. Despidos dos andrajos e da sujeira, um deles foi reconhecido por um colega que fez doutorado com ele em Portugal; outro foi localizado pela família, que o reconheceu em um programa de televisão.
Que o caminho aberto seja trilhado por outros prefeitos de boa vontade.

Crack, epidemia de desinformação


Por que certas estatísticas exageram a incidência da droga, enquanto minimizam os do álcool. Quais as alternativas ao inferno das “comunidades terapêuticas”

Por Joana Moncal, Júlio Delmanto e Spensy Pimentel Foto: Danilo Ramos, em Revista do Brasil

Estudantes, representantes de movimentos sociais, agentes pastorais e intelectuais comeram embalados por samba e forró ao vivo. Nos bares, dançava-se Racionais MCs. Os discursos eram raros e curtos, nada de comício. O churrasco daquele sábado, 14 de janeiro, apenas marcava a solidaridade à bola da vez na repressão policial em São Paulo, os usuários de drogas da área conhecida como “Cracolândia” – alvo de desastrosa operação da polícia paulista, a Ação Integrada Centro Legal, ou Operação Sufoco. A noite chegava, as pessoas se dispersavam e os usuários de crack e outros moradores de rua não usuários, também alvos da ação policial, se despediam.
“Agora, vocês vão embora, a madrugada chega, e o jogo começa outra vez”, dizia um deles. “A gente sabe que em mais umas semanas isso termina. Eles já conseguiram o que queriam, saiu na televisão.” A resignação com o absurdo da situação é mais um sintoma da falência do modelo de repressão às drogas. Como já deve ter percebido qualquer pessoa que tem na família ou entre os amigos algum caso de uso problemático dessas substâncias, violência é o que menos resolve. “A operação é voltada para o cuidado com o lugar, e não com as pessoas em estado de vulnerabilidade”, define Daniela Albuquerque, da Defensoria Pública de São Paulo, atuante no caso das operações policiais na Cracolândia.
“Esse interesse em uma ‘solução’ chega movido por politicagem na época da eleição, e nunca por motivos de ordem técnica, humanitária”, critica o psiquiatra Raul Gorayeb, 62 anos. Com mais de três décadas de experiên­cia profissional em saúde mental, Gorayeb assessorou Secretarias de Saúde em níveis municipal e estadual.
Hoje, coordena o Centro de Referência da Infância e da Adolescência, no Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo. “Está todo mundo interessado em tirar dividendos políticos. Virou moda, a mídia ajuda. Um pouco antes do crack, era a questão de tirar as crianças de rua das ruas. Mais atrás, era a Febem. Sempre se trata de promover algum barulho”, completa.

Números?

Não dá para tirar a razão do psiquiatra e dos usuários ouvidos quando se analisa o que, de fato, justificaria o crack ter se tornado assunto da vez. A Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), do Ministério da Justiça, não dispõe de números atualizados para mapear a dimensão real de sua expansão no país. A pesquisa mais recente disponível sobre o tema é o Relatório Brasileiro sobre Drogas de 2009, organizado pela Senad, mas os dados sobre o crack são de 2005. Atualmente, o governo corre contra o tempo para aprimorar seu diagnóstico.  Um olhar um pouco mais criterioso sobre o que há disponível tem algo de estranho.
Por exemplo, a Confederação Nacional dos Municípios divulgou, em 2011, uma pesquisa segundo a qual 98% das cidades analisadas dizem enfrentar problemas com o crack. O estudo foi baseado em questionários enviados às prefeituras, com perguntas como: “Seu município enfrenta problemas relacionados ao consumo de drogas? Caso sim, qual: crack ou outras drogas?” Certamente o método influencia o resultado, considerando-se que a CNM é uma associação que realiza a intermediação entre governo federal e prefeituras, sempre em busca de verbas.
O que os números mais confiáveis mostram é que o álcool – droga lícita – continua sendo o que mais problemas causa: foi responsável, em 2007, por 83% das mortes (6.500) e por 69% das internações (95 mil) decorrentes de transtornos mentais e comportamentais pelo uso de drogas. No mesmo período, a incidência do crack sobre esses índices, de tão pequena, não mereceu menção na pesquisa da Senad.
“O crack não é a substância psicoativa que mais deveria ser tema de debate no Brasil, e sim o álcool. Mas, como está muito relacionado a um contexto de pobreza extrema, marginalização e ocupação de espaço público, a própria existência do seu consumidor é menos suportável”, afirma o antropólogo Maurício Fiore, integrante do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Neip), formado por pesquisadores da área de ciências humanas.
É certo que têm aparecido dados sobre seu uso em lugares onde a opinião pública nem imagina (leia reportagem à página 22), mas, por enquanto, é preciso precaução. “O consumo de crack se disseminou pelo país e, ao que parece, teve um aumento razoável nos últimos anos. Mas não se trata de epidemia, e sim do fato de seu consumidor, por uma série de fatores, incomodar mais os olhos”, diz Freire.

O plano

Com pressões de todos os lados, o governo anunciou em dezembro o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas, com previsão de investimentos de R$ 4 bilhões. São recursos para a prevenção ao uso, tratamento e reinserção social de usuários e enfrentamento do tráfico de crack e outras drogas ilícitas. O ponto mais polêmico diz respeito à destinação de recursos para criação de leitos nas chamadas “comunidades terapêuticas” – centros de internação para tratamento de dependentes.
Para o Conselho Federal de Psicologia (CFP), esse é um fator de alerta. “O plano se mostrou pouco inovador e, com a inclusão das comunidades terapêuticas como dispositivos do Sistema Único de Saúde, levanta-se a preocupação de que isso possa se constituir no retorno da lógica manicomial, que segrega e isola o indivíduo das suas relações sociais, familiares e do seu território cultural”, aponta o órgão, em nota divulgada recentemente.
“Muitos jovens que atendi foram moradores de comunidades terapêuticas por um tempo. As atrocidades que me contaram a que eram submetidos lá dentro são de arrepiar”, conta o psiquiatra Gorayeb. Relatório do CFP revela uma série de violações aos direitos humanos em clínicas de tratamento de usuários em todo o país. Movimentos ligados ao debate sobre a descriminalização das drogas também têm se juntado a uma campanha contra o repasse de verbas públicas para essas clínicas, frequentemente ligadas a grupos religiosos e políticos, e de resultados duvidosos.
São questionadas ainda outras ações tomadas em nome do combate ao crack. Em especial, a já mencionada Operação Sufoco em São Paulo, cuja premissa expressa pelo coordenador de Políticas sobre Drogas do governo paulista, Luiz Alberto Chaves de Oliveira, era levar “dor e sofri­mento” aos dependentes para que busquem tratamento.
E a internação compulsória de crianças e adolescentes em situação de rua com alto grau de dependência química, em vigor no Rio de Janeiro.
“Internações forçadas só se justificam pontualmente, por um breve período e quando há risco de morte, por exemplo”, diz a defensora Daniela Albuquerque. “Experiências na área da saúde demonstram que a internação contra a vontade do paciente tende a ser ineficaz. A adesão ao tratamento é elemento fundamental.”

Que fazer?

O fato é que o país tem poucas respostas. Embora seja reconhecida como droga violenta e destrutiva, o crack não é um beco sem saída. Vários casos evidenciam que é possível recuperar-se. Mas não há passe de mágica. “O problema das drogas não é médico na sua origem, é social”, afirma Gorayeb. O bombardeio na mídia é tão forte que, muitas vezes, parece não haver alternativa às internações, o que não é verdade. Há anos, o Sistema Único de Saúde desenvolve tratamentos baseados em atenção multidisciplinar por meio dos Centros de Atendimento Psicossocial para Álcool e Drogas (Caps-AD), com apoio de hospitais para internação em casos de crise, e estruturas da assistência social.
O problema é o déficit crônico de recursos no SUS, além do fato de que os princípios que devem guiar esse atendimento nem sempre são seguidos. “Governos tomaram os Caps para si e impuseram um funcionamento que distorceu seus princípios, que são ótimos”, diz Gorayeb – que já atuou na implementação de Caps desde sua criação.
Em 2006, no início do governo Gilberto Kassab, as ingerências políticas, segundo ele, levaram a seu afastamento da direção de um Caps Infantil no centro de São Paulo. Ele se negou a seguir a ordem da prefeitura de encaminhar as crianças de rua para internação em hospital psiquiátrico. “Estava perto das eleições e havia uma campanha de que deixariam a cidade limpa, uma clara política de higienização. Durante o tempo em que estive lá não internamos nenhuma criança trazida da rua porque não tinham indicação clínica técnica. Fui afastado do cargo.”
Enquanto o setor público sofre com problemas políticos e falta de recursos, as pessoas se viram como podem. O recifense Saint Claer Angeiras, de 27 anos, está sem usar droga há quatro. Apesar de trabalhar e estudar dentro da linha conhecida como redução de danos – que não prima pela abstinência e busca minimizar os efeitos do uso de drogas pelo diálogo com os usuários –, ele diz ter se recuperado da dependência por iniciativa própria.
“Passei meses internado, estive preso, me tratei em clínicas e em Caps, passei por todo tipo de estratégia de recuperação e nenhuma funcionou. Coloquei na balança e pesei dois cenários de como minha vida estaria depois de cinco anos: com ou sem drogas”, relata Saint Claer, acrescentando que qualquer que seja o tipo de tratamento oferecido só funcionará com disposição por parte do dependente.
Desde a morte da mãe, quando tinha 8 anos, Saint Claer viveu na rua e só conseguiu deixar o uso abusivo de crack quando optou por se tratar com afinco. Sofreu bastante por meses, mas superou essa fase, com ajuda dos profissionais de um Caps em Recife, onde inclusive passou a trabalhar. A oportunidade de emprego foi parte fundamental da recuperação, propiciando-lhe nova rotina e outras motivações. Ele integra hoje uma equipe de pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz e faz faculdade de Serviço Social.
Em São Paulo, o Centro de Convivência É de Lei é referência nacional na atuação com usuários de drogas na região central. De acordo com a psicóloga Camila Alencar, a principal característica do trabalho da organização é a busca de vínculos com o usuá­rio. “Construímos junto com ele alternativas a um possível uso abusivo. Na maioria dos casos a ideia não é só cuidar do uso em si, mas dos muitos aspectos que o permeiam. Se você consegue ressignificar esses aspectos, o uso acaba naturalmente se modificando”, aponta Camila.
Por não lidar com as drogas de forma repressiva, a redução de danos costuma ser vista como estratégia complacente, ou até estimulante ao consumo. “Pensar a redução de danos como estímulo a drogas é o mesmo que dizer que a camisinha é um estímulo ao sexo”, refuta a psicóloga. “Não podemos esquecer que é o consumidor o principal atingido por seu uso.”

Livre e espontânea pressão

Assim como Saint Claer, o psicólogo Maurício Cotrim já teve experiências difíceis com a dependência de crack e, uma vez superada, passou a trabalhar no atendimento a pacientes com o mesmo problema. Com pai alcoólatra e mãe “passiva”, Cotrim passou a consumir crack com frequência aos 15 anos, chegando a se sentir “como um rato, praticamente desistindo de viver”. Largou o vício de forma aparentemente pouco usual: após um princípio de overdose, procurou a polícia, que o encaminhou a uma assistente social. Esta, por sua vez, propôs um tratamento em regime de internação, e ele aderiu.
Cotrim rechaça o estereótipo que relaciona o consumo de crack à miséria. “Em consultório ou nas clínicas em que atuo atendo pacientes das mais variadas classes sociais, níveis culturais e tipos de dependência: de um morador de rua ou ex-presidiário ao intelectual com ensino superior ou grande empresário, advogado etc.”
Ele não se alinha ao campo conhecido como redução de danos e diverge de sua repulsa às internações, vistas como necessárias apenas em casos extremos de risco de suicídio ou à saúde de terceiros. “Entendo as questões ligadas à luta antimanicomial, e gostaria muito que na realidade nenhum paciente necessi­tasse de internação, que todos se tratassem ambulatorialmente, nos grupos de NA e AA, nos consultórios particulares, mas na prática o buraco é bem mais embaixo”, acredita o psicólogo.
Tomando sua própria experiência, e a de seus pacientes, como exemplo, ele questiona a distinção normalmente feita em relação às internações: “Falar em paciente voluntário ou involuntário é muito subjetivo, pois quase nenhum dependente químico ou alcoolista chega a um tratamento, mesmo que por suas próprias pernas, porque quer. Chega ‘por livre e espontânea pressão’, como costumo dizer”.
Mesmo quem trabalha em clínicas particulares, como ele, concorda que, ao contrário do que apregoa o senso comum, a internação pura e simples não é o melhor caminho para tratar o problema. “Cada caso é um, porque cada indivíduo é único. Mas, exceto naqueles que representam um risco extremo para o dependente ou para quem convive com ele, a internação é a última opção.”
Cotrim lamenta, porém, o fato de muitas vezes ser procurado por pacientes que buscam mas não encontram tratamento no sistema público. “A demora em receber alguém para uma simples triagem é absurda”, reclama.

A caminho da saída

A conversa final no churrasco do dia 14, na “Cracolândia” paulistana, é com Lúcio Mauro Pereira Mendez, 37, que conta já ter estado “limpo” do crack por 15 anos. Durante esse período, casou duas vezes e teve três filhos. Aos 34, sofreu uma recaída e, a partir de então, vive em um albergue da prefeitura na região da Luz. Há menos de um mês está em abstinência, na luta para parar. “A filosofia de ‘só por um dia’ funciona”, conta ele, que há duas semanas não recorre ao acompanhamento que vinha tendo na “Cristolândia”, misto de igreja e centro comunitário.
A experiência de Mauro na busca por uma saída é vasta. Ele já frequentou centros do SUS e pelo menos duas clínicas particulares. Ao lembrar de como parou de usar crack da primeira vez, afirma: “A melhor clínica é a mente. Consegui parar por vontade própria, mas com muita ajuda da minha companheira na época”. Sobre a internação compulsória, diz que é o mesmo que ir para a cadeia. “Só traz revolta para o dependente. O que a gente precisa é de afeto, é de alguém que te dê a mão e diga: ‘Por aqui é mais seguro’.”
Mauro já esteve em contato com o trabalho do É de Lei. “Eles dão suporte, apoio moral, passam coisas boas. Você não se sente inferior, mas como alguém da sociedade. O usuário incomoda a sociedade. Há furtos, deselegância na rua, agressão… É difícil conviver com ele, eu sei. Mas somos humanos. Não posso ser hipócrita, fazemos parte da sociedade, mas estamos embaixo dela.” Ele diz que não vê o filho mais novo há dois anos, talvez por um pouco de orgulho próprio. “Não quero que ele me veja assim. É triste não poder andar onde você gosta por ter vergonha de si mesmo.”
Atualmente, Mauro vive um novo relacionamento, acaba de conseguir um emprego e está esperançoso. “Nós precisamos procurar ficar bem, ter um pouco de orgulho próprio. É o que quero para mim e para todos, não é fácil olhar e não ser visto.”

Para enxergar o crack de cara limpa


Num seminário em SP, historiador Henrique Carneiro lembra que consumo compulsivo é motor do capitalismo e sugere caminhos alternativos para oferecer horizonte a usuários

No site do Coletivo DAR

O seminário “Cracolândia muito além do crack” começou em grande estilo na noite desta segunda-feira, na Faculdade de Saúde Pública da USP, em São Paulo. Com cerca de 300 presentes lotando o auditório – e mais uma sala cheia onde os atrasados acompanhavam o papo pelo telão – a mesa inicial contou com o cientista social Rubens Adorno e o historiador Henrique Carneiro, e mostrou bem qual será a cara do evento: desmistificar e aprofundar o debate em torno do crack, através de olhares diversificados e muito sérios.
Além das ótimas exposições dos dois participantes, o debate contou com diversas (e interessantes) perguntas feitas pela platéia. O seminário prosseguiu na terça e na quarta abordando aspectos jurídicos, antropológicos e sociais da questão.
“A cracolândia é a cara de São Paulo”
Foi com essa frase que o cientista social Rubens Adorno, coordenador do projeto “Usuários de crack: agenciamentos e usos em territórios urbanos”, iniciou sua fala. Preocupado em se opor ao senso comum demonizador da substância, e de seus usuários, Adorno ressaltou a completa ausência de políticas públicas consequentes para estas populações e a forma enviesada e generalizante com que este importante tema é tratado política e midiaticamente.
Com ampla experiência de campo adquirida durante o projeto, Adorno lembrou da invisibilidade destas pessoas como estratégia estatal para a região. “Uma maneira de se ler o Estado é a forma como ele lida com seus setores marginais”, apontou, caracterizando o atual momento como muito próximo ao que o intelectual francês Loic Wacquant denomina de “Estado policial”. Há populações que se deixam viver, e outras que se deixam morrer.
Ele lembrou de diversas analogias feitas para se retratar a região popularmente conhecida como cracolândia, que hoje conta até com verbete na Wikipédia. Já foi definida como uma grande feira, um parque de diversões, um local de convívio entre Deus e o Diabo, um refúgio urbano de moradores da periferia e mesmo como uma “rave pública”, em oposição às festas privadas onde jovens das classes médias e altas também usam e abusam de drogas ilícitas – sem PM, é claro.
Segundo o cientista social, o crack representa uma inovação do ponto de vista “do marketing do mercado de drogas”: tanto seu preço como suas formas de distribuição e armazenamento propiciam uma circulação mais ágil em relação a outras substâncias também muito consumidas. Posteriormente se dá a identificação do crack com áreas degradadas, uso abusivo e violência, numa equação altamente estimulada e propagada pela mídia.
Adorno classificou o crack como um espelho do neoliberalismo: com o fim do Estado de bem-estar social, é na esfera do consumo que se dá o exercício de cidadania nos dias atuais. Na ausência de tal bem-estar, ele passa a ser vendido – é a felicidade vendida em forma de mercadoria.
“O crack talvez seja o bem econômico que mais cresce no Brasil”, lembrou Adorno. Sua difusão envolve pessoas desligadas do trabalho, ou ligadas a materiais descartáveis – pessoas estas também descartadas pelo mercado. O crack atuaria assim como o descartável urbano (por ser um “resto” da cocaína) que coloca os descartáveis urbanos novamente no interior do sistema macroeconômico. “O crack integra o circuito marginal à sociedade de consumo”, resumiu.
O crack como bode expiatório e nocebo
Na exposição seguinte, Henrique Carneiro foi didático e profundo como sempre.  Começou propondo situar o crack num contexto mais abrangente, lembrando que a ingestão de substâncias psicoativas tem uma universalidade na história humana.
Na tradição clássica, por exemplo na Grécia antiga, o uso problemático inicialmente foi visto como falha moral. Posteriormente como pecado, no bojo do cristianismo, e depois como doença na tradição médica. Em comum nestas visões o fato de o uso problemático ser visto como distúrbio mas não como crime, transformação que ocorre apenas na virada do século XIX para o XX.
Surge o proibicionismo, que pressupõe a necessidade da abstinência compulsória imposta pelo Estado, um fato recente historicamente.  Abstinência seletiva, ressalte-se, uma vez que só algumas substâncias são eleitas portadoras dos males sociais e proibidas.
Carneiro relacionou o abuso não com as substâncias em si, mas com a própria instituição da sociedade mercantil contemporânea. “A história da expansão européia – e do capitalismo – é a da expansão das drogas”, lembrou, ressaltando o papel que especiarias, açúcar, tabaco, álcool fermentado e depois destilado, café, chá, chocolate e outras drogas cumpriram no desenvolvimento do capitalismo. “Esse movimento simplesmente criou o mundo moderno”, salientou.
Prosseguiu citando Marx  e o fetichismo da mercadoria, a propensão do capitalismo à instigar que se consuma sempre mais. “O vício não é intrínseco ao consumo de drogas ou de alimentos, mas sim das mercadorias”. Citou como exemplo o tabaco, substância amplamente conhecida e consumida entre os indígenas pré-colombianos mas que jamais teve os padrões de consumo atuais nestas culturas. “Os indígenas não fumavam 20 cigarros por dia, o consumo se dava de forma integrada à sua organização social”.
Citando o filósofo alemão Christophe Turcke, apontou a existência não de uma epidemia de crack, como prega o senso-comum, mas sim de uma “epidemia de hiperatividade” – a hiperexcitação seria característica social importante, num contexto em que até mesmo se locomover de um ponto a outro da cidade causa grande agitação e stress.
Carneiro chegou então ao centro de sua exposição, a natureza sacrificial do consumo de drogas e alimentos. Modelo espiritual da origem das religiões, o sacrifício seria um rito universal, uma forma que a humanidade historicamente encontrou para fazer frente ao seu principal inimigo: o medo.
Com o tempo, o sacrifício humano e de animais, para fazer frente à natureza ameaçadora e desconhecida, passa a ser substituído por um emblema de sacrifício, muitas vezes ingerido. O sacrifício de Cristo, por exemplo, é repetido até hoje através da ingestão da droga álcool. Em grego, bode expiatório é “farmacós”, palavra muito próxima de fármaco – é o remédio para vencer o terror que a natureza coloca à humanidade.
Para Henrique, nos dias atuais são os consumidores de crack os bodes expiatórios. Num duplo sentido: são bodes expiatórios da sociedade, que não quer ver os problemas estruturais de sua crise de civilização, e deles próprios, purgando suas dores em meio a vidas degradadas.
Lembrando do placebo, a substância que mesmo inócua pode trazer benefício psicológico já que é benefício que se espera de seu uso, Carneiro apontou o outro lado desta moeda, o nocebo. “Se você busca o mal numa substância você pode encontrá-lo”.
Para ele, o problema principal do crack não passa pela substância, mas sim pela forma como ela se apresenta, não somente adulterada mas no contexto social onde está inserida. Um contexto social nocebo. “O crack é a faceta visível da miséria geral”, definiu, avaliando haver também a existência de um “urbanismo político que busca tornar invisível essas manifestações” em um gueto, uma zona de exclusão social permanentemente vigiada.
Assim, o crack torna-se problema dentro de um contexto proibicionista, no qual a proibição só existe pois é muito útil para interesses econômicos e de controle social. A saída? “A única forma de assistir essas pessoas é isolá-las tanto do crime quanto da repressão”, pontuou Carneiro, lembrando das bens sucedidas experiências de salas de uso assistido, as “narcossalas”, que tiveram ótimos resultados na Europa e no Canadá ao tratarem de usuários de heroína. “O crack não pode ser visto isoladamente em relação à regulamentação geral das drogas hoje ilícitas”, finalizou.

Crack: a recuperação é possível?


No Rio, experiência humanizada no tratamento da dependência alcança altos índices de adesão, desfaz mitos e aponta para novos horizontes

Por Vladmir Platonow, da Agência Brasil

O difícil trabalho de recuperação dos usuários de crack começa no contato diário e direto com os agentes sociais. A experiência acumulada nos últimos três anos nas comunidades de Manguinhos e Jacarezinho, no Rio, demonstra que a chamada busca ativa dos dependentes da droga pode ser o caminho mais promissor para a reinserção social. Com isso, o resgate positivo chega a 50% dos usuários.
A assistente social Conceição Monteiro, da Secretaria Municipal de Assistência Social, percorre os becos e vielas das comunidades em busca dos dependentes, juntamente com outros especialistas de sua equipe, incluindo psicólogos e agentes de educação. “Já fazemos um trabalho sistemático de abordagem de população de rua nas comunidades de Manguinhos e Jacarezinho desde 2009. Este trabalho é diário, assim como o acolhimento e o acompanhamento das famílias. A gente está criando ações mais diretas para atender à demanda de forma mais ágil, tendo em vista que os usuários estão migrando para outros pontos. Então, a gente está indo atrás deles, mesmo em mudança de local, para poder oferecer o serviço de assistência.”
Para facilitar a presença diária nas duas comunidades – que abrigam cerca de 70 mil moradores e eram associadas até o último dia 14, quando houve a ocupação pelas forças de segurança, ao forte consumo de crack – a secretaria decidiu reforçar o trabalho. Um micro-ônibus serve como ponto de referência e acolhimento, ficando baseado em diferentes locais a cada dia. Essa proximidade é a chave, segundo a assistente social, para a recuperação dos usuários.
“Temos um retorno [positivo] de 50%. E para esses que não são alcançados, há um trabalho todo de retomada. A gente não desiste daquele usuário. Mas a metade nós conseguimos êxito. Isso significa que a pessoa conseguiu o tratamento, está no mercado de trabalho, foi reinserida na família.”
De acordo com Conceição, é justamente a reconstrução dos laços familiares o fator que garante maior eficácia na recuperação. “Essa é a etapa principal do nosso trabalho. Porque o resgate do vínculo familiar causa muito êxito no atendimento. Com a família estando ali, em conjunto a gente consegue retomar esse usuário. Quando não há esse vínculo, a gente faz outro trabalho, mas é mais demorado.”
O tempo de recuperação de um usuário de crack vai depender do estágio em que ele se encontra e geralmente demanda muita persistência. “Isso depende muito do público abordado. Há pessoas que estão há pouco tempo naquela situação, então o tratamento é um pouco mais rápido. Outras já estão em uma reincidência grande de tratamento e de reinternação. É um trabalho sistemático. A gente retorna, procura referência familiar, vai cercando outras possibilidades, até chegar ao usuário. Na primeira abordagem, às vezes a pessoa nem conversa e corre. Por isso, é importante o trabalho diário, que vai criando os vínculos com a equipe.”
Moradora da região, Conceição viu de perto a chegada do crack nas comunidades. “Essa questão da droga e da dependência cresceu bastante nos últimos anos. Mas o nosso trabalho é de persistência. As pessoas [dependentes] desistem, mas depois retornam. E o importante é estar ali, para dar a oportunidade do retorno.

Fonte:http://outraspalavras.net/

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