TIVEMOS UM 'MODELO DE CRESCIMENTO',MAS ESTAMOS LONGE DE TER UM PROJETO DE NAÇÃO

Tivemos um ‘modelo de crescimento’, mas estamos longe de ter um projeto de nação 


Patrícia Fachin – “Uma vez que setores industriais são afetados, a reversão não se dá rapidamente. Neste sentido, não se deveria esperar que bastasse o movimento de desvalorização do câmbio para que houvesse uma reversão da dinâmica negativa”, pontua a economista.
“O perfil da indústria nacional não esteve no centro da discussão do modelo de crescimento brasileiro” nem na década de 1990, “quando tivemos um modelo menos centrado na intervenção do Estado e com um viés liberal”, nem “a partir de 2003, com importante participação do Estado”, avalia Vanessa Petrelli, em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.
Contudo, comenta, não é somente a falta de investimento que contribui para o baixo crescimento da indústria brasileira: “a questão do câmbio e da abertura comercial são elementos importantes a serem considerados, sendo essencial destacar que o impacto negativo de ambos vem ocorrendo paulatinamente desde a segunda metade da década de 1990”.
A economista explica que a crise econômica brasileira também está associada à “nova geografia da produção”, que emergiu desde os anos 2000, “em que corporações dos Estados Unidos e da Europa se dirigiram especialmente para a periferia asiática, mas também para a América Latina e a Europa oriental buscando custos mais baixos e ganhos adicionais. (…) Ou seja, novas unidades industriais foram deslocadas do centro para as periferias num processo de outsourcing global, mas destacando-se o direcionamento das unidades industriais especialmente para a China”.
Vanessa Petrelli também enfatiza que o Brasil está “longe de ter um projeto de nação”. O que se implantou no país até agora foi, de 2003 a 2010, um “modelo de crescimento que articulou o crescimento mundial a uma dinâmica do mercado interno que permitiu o crescimento com impactos de distribuição de renda. No entanto, este movimento não esteve articulado, de fato, a um projeto de nação mais amplo”. E alfineta: “Não analisamos o fato de que os resultados distributivos alcançados são avanços, mas ainda muito insuficientes para as condições de pobreza do país. Não atacamos a questão de como atuar mantendo esta dinâmica distributiva, mesmo quando o mundo não estivesse crescendo tanto (fato que ocorreu a partir de 2008)”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por que o Brasil continuou optando por um modelo econômico primário-exportador? Quais são as causas dessa opção no longo prazo?
Vanessa Petrelli – Em primeiro lugar, é preciso qualificar a colocação de que o Brasil tem um modelo econômico primário-exportador. Se formos tomar a pauta exportadora brasileira historicamente, veremos que esta questão é mais complexa do que tomar-se unicamente a participação dos “produtos primários” e “manufaturados ligados a recursos naturais” sobre o total das exportações do país.

Na verdade, a pauta exportadora brasileira é bastante mais complexa do que isto. Se tomarmos o interregno que vai de 2000 a 2003, veremos que os dois primeiros grupos setoriais que citei acima representavam, em média, 52% da pauta exportadora brasileira. Os outros 48% estavam distribuídos pelos demais grupos: manufaturados de baixa e alta Intensidade tecnológica; automotores, processamento, engenharia. Ou seja, esta não pode ser classificada como sendo uma pauta essencialmente primário-exportadora, ainda que a concentração de 52% vinculada aos grupos ligados a produtos primários e manufaturados relacionados a recursos naturais indicasse um desbalanceamento da mesma.
Após os anos 2000, de outra parte, pode-se dizer que praticamente todos os grupos setoriais apresentam crescimento expressivo, exceto os grupos de manufaturados de alta e baixa intensidade tecnológica. Aliás, o Market Share do Brasil com relação ao comércio mundial para cada um dos Grupos cresceu, à exceção do grupo de manufaturados de alta intensidade tecnológica. O Market Share médio de 2000 a 2003 era de 0,50% e passou para 0,47% entre 2010 e 2012. Ou seja, mesmo neste caso não se apresentou uma modificação importante.
Assim, o que quero dizer é que a avaliação quanto ao perfil da pauta exportadora brasileira precisa ser mais detalhada quando se discute esta questão, uma vez que nossa pauta é diversificada e diferente daquela de países que não têm uma pauta exportadora vinculada a produtos mais complexos. Além do mais, vimos que no período mais recente houve uma melhora do Market Share brasileiro nas exportações mundiais, exceto do setor de manufaturados de alta intensidade tecnológica. É claro que isto indica uma piora relativa do perfil da pauta. No entanto, o que quero alegar aqui é o fato de que o país não é meramente primário-exportador e que praticamente todos os grupos setoriais tiveram crescimentos importantes se tomarmos a comparação entre 2000-2002 e 2010-2012. Cito como exemplo: o grupo setorial “Processamento” cresceu 3,6 vezes entre os dois subperíodos, com uma taxa de crescimento médio anual de 10,74%; o grupo setorial intensivo em “Engenharia” cresceu 3,2 com taxa de crescimento médio de 9,59% ao ano; e o grupo “Automotores” cresceu 2,8 vezes, com taxa de crescimento médio anual (9,59%). Neste sentido é que aumentou o Market Share nas exportações mundiais.
Esta situação, por outro lado, é dinâmica, pois à medida que a dinâmica exportadora brasileira tem piorado, a questão da posição do país no comércio mundial também muda.
De outro lado, considerando o ponto que estou aqui tentando enfatizar, o que chama atenção na comparação entre os mesmos dois períodos é o crescimento explosivo das exportações de “produtos primários” e “produtos manufaturados ligados a recursos naturais”. O primeiro ampliou em 5,5 vezes seu valor absoluto, na comparação entre 2000-2002 e 2010-2012, e a taxa de crescimento médio anual foi de impressionantes 15,4%. Paralelamente, o grupo setorial “manufaturados baseados em recursos naturais” teve essencialmente a mesma dinâmica: cresceu 5,5 vezes na mesma comparação dos dois subperíodos e teve uma taxa de crescimento médio anual de 14,59%.
Pauta exportadora
Como se percebe, estes grupos setores cresceram em ritmo superior aos demais grupos. Ora, esta dinâmica modificou a pauta exportadora brasileira. Se tomarmos os produtos primários somados aos produtos manufaturados baseados em recursos naturais, atestamos este fato. Enquanto entre 2000-2002 esta soma correspondia aos já citados 52% das exportações, entre 2010-2012, elas atingiram o nível médio de 70% do total. Isto, no entanto, não quer dizer que os demais setores não tenham crescido, como citei indicando os dados acima.
Ou seja, o que vemos é que neste período de crescimento do comércio mundial o Brasil aproveitou-se do crescimento do mercado e dos preços favoráveis, aumentando suas exportações de primários e manufaturados ligados a recursos naturais em níveis superiores ao próprio crescimento das exportações mundiais desses dois setores, mudando seu Market Share para estes grupos setoriais de forma mais expressiva. No entanto, para os demais setores a dinâmica exportadora foi apenas um pouco maior do que a observada no resto do mundo e o crescimento não tão expressivo do Market Share reflete, em parte, este fato.
“O desbalanceamento da pauta exportadora brasileira está muito maior do que era anteriormente”
Este é um dos indicadores de que a dinâmica exportadora brasileira recente não mudou essencialmente a posição mundial do país no que se refere à exportação de produtos manufaturados. No entanto, a qualidade destas exportações precisa ser qualificada, pois perdemos participação no caso do setor Intensivo em Alta Tecnologia.
O que podemos dizer é que o país não se aproveitou desta fase de expansão do comércio para mudar a sua participação na exportação de produtos manufaturados de forma mais expressiva. Na verdade, o Brasil andou na “linha de menor resistência”, aproveitando-se fortemente da melhora do preço mundial das commodities e do crescimento da demanda por produtos primários e manufaturados ligados a recursos naturais. Como consequência, o desbalanceamento da pauta exportadora brasileira está muito maior do que era anteriormente.
IHU On-Line – Desde o início do segundo governo Lula os economistas já anunciavam um cenário de desindustrialização, o qual saiu de cena por um tempo por conta do crescimento de 7%, que foi fruto do modelo primário-exportador. Agora, diante de estagnação e possível recessão, volta-se ao tema da doença Holandesa. O que aconteceu? O que inviabilizou ou tem inviabilizado a industrialização do país?
Vanessa Petrelli – É claro que esta questão é extremamente complexa, sendo que o próprio debate da industrialização nos remete à discussão estruturalista da industrialização periférica e à questão da restrição externa também de mesmo viés teórico levantada desde Prebisch e Celso Furtado.
Não podendo entrar na complexidade desse debate e, mais uma vez, destacando o fato de que acho que se deve qualificar devidamente a colocação do país como “primário-exportador”, no espaço desta entrevista gostaria de tratar de duas questões ligadas essencialmente a movimentos que se desenvolvem a partir da década de 1990 e intensamente após os anos 2000: o movimento de valorização do câmbio pelo processo de abertura financeira nos países periféricos e a nova dinâmica da produção e comércio mundiais.
A primeira questão é que um dos fatos que considero importante comentar é que o processo de problematização da indústria nacional no período recente está, em parte, ligado à questão cambial, e este aspecto não se circunscreve à dinâmica observada a partir dos anos 2000 — nos Governos Lula e Dilma.
Câmbio: abertura comercial e financeira
Podemos buscar a dinâmica da valorização relativa do câmbio no binômio “abertura comercial e financeira” aprofundado no país ao longo dos anos 1990 combinado com a centralidade da política de combate da inflação no país.
Explico. O processo de abertura financeira engendrado pelo Brasil e por grande parte dos países “emergentes” durante a década de 1990 tornou estes países grandes receptores de capitais em busca de ganhos financeiros, tendo em vista o forte diferencial dos juros oferecidos por instrumentos financeiros desses países (títulos de dívida lançados por residentes) em comparação aos juros pagos nos chamados “países centrais”, especialmente nos Estados Unidos.
A partir daí, o que passa a ser observado é que, nos momentos de liquidez internacional (dinâmica ditada pelos mercados financeiros dos países centrais), ocorre grande fluxo de recursos aos países periféricos, provocando-se uma pressão de valorização do câmbio. Isto ocorre, desde a década de 1990, quando nos períodos de liquidez observou-se este forte movimento de ingresso de recursos.
No caso do Brasil este processo foi verificado. Considerando a década de 1990, sabemos que após a adoção do Plano Real, o país implantou a dinâmica de câmbio administrado, que permaneceu até 1999. A opção poderia ter sido a de privilegiar a manutenção de um câmbio competitivo para as empresas, mas, na verdade, a lógica foi a de adotar-se um nível de câmbio relativamente valorizado — funcional para o combate à inflação. Como resultado, vemos a rápida deterioração da balança comercial brasileira ao longo da segunda parte da referida década. De outro lado, indicando o volume de recursos ingressantes e a pressão sobre o câmbio, as reservas cresceram rapidamente, explicitando a contínua intervenção do Estado, enxugando os recursos para manter o nível de câmbio indicado pela política macroeconômica.
Deterioração da balança comercial
Conforme comentei, a deterioração da balança comercial é um indicativo desse processo, que vem junto também com a abertura da balança comercial. Aqui se congrega a dinâmica de que a taxa de crescimento das exportações passa a ser menor do que a taxa de crescimento das importações, esta última facilitada pelo câmbio valorizado e pela abertura comercial. Observa-se aí a paulatina piora da balança comercial resultante da sobrevalorização do câmbio. De outro lado, a problematização sobre a indústria local já se dá a partir daí. O impacto sobre a indústria de bens intermediários já se faz sentir desde aí e o aumento das importações dos mesmos é um dos indicadores desse processo.
Ou seja, um dos fatores importantes para se considerar é que a problematização do câmbio sobre a indústria nacional deve ser buscada na abertura financeira. A partir daí, nos momentos de expansão da liquidez geram-se impactos importantes de valorização em países periféricos que não controlam a entrada desses capitais e este passa a ser um fator estrutural. Além do mais, a lógica de privilegiamento do combate à inflação é um fator que se agrega.
“O debate da industrialização nos remete à discussão estruturalista da industrialização periférica”
Esta segunda questão também é importante, mesmo quando o país adota o regime de câmbio flutuante, uma vez que, mesmo nesta situação, a autoridade monetária atua no mercado de câmbio.
É claro que a este fator se agregam outros fundamentais, estritamente ligados à dinâmica produtiva, especialmente se discutimos a questão estrutural de países periféricos e da posição específica de cada um deles no comércio mundial.
Nova geografia da produção
O que se observa é que a partir dos anos 2000 emergiu uma “nova geografia da produção”, em que corporações dos Estados Unidos e da Europa se dirigiram especialmente para a periferia asiática, mas também para a América Latina e a Europa oriental buscando custos mais baixos e ganhos adicionais. Este processo de desintegração vertical e internacional tem permitido a manutenção de altos mark-ups e de elevados lucros e valor acionário, bem como provocou um forte movimento internacional dos investimentos diretos. Ou seja, novas unidades industriais foram deslocadas do centro para as periferias num processo de outsourcing global, mas destacando-se o direcionamento das unidades industriais especialmente para a China.
De forma articulada a estes dois processos, observou-se uma mudança do perfil do comércio mundial, e a articulação da China a todo este processo é um dos grandes marcos da mudança da dinâmica mundial e da dinâmica da produção industrial locacionalmente distribuída no mundo. No contexto do movimento das grandes Corporações, a China abriu-se para os investimentos estrangeiros, produzindo condições a estas corporações de alta rentabilidade para as firmas ingressantes. De outro lado, a rápida industrialização da China e o avanço de sua urbanização levaram a que ela passasse a demandar uma importante fração da produção mundial de commodities, enquanto passou também a ser uma forte ofertadora de produtos manufaturados. Especialmente a partir dos anos 2000, o crescimento da demanda mundial pressionou para cima os preços das commodities, e outro fato que contribuiu para o mesmo movimento foi a elevação dos recursos dirigidos aos mercados futuros de commodities, por conta da alta liquidez que se observa após 2003.
Ou seja, o período que vai do início dos anos 2000 até 2008 é de crescimento da economia mundial, de grande liquidez e de aumento do quantum de comércio, mas de mudança da dinâmica competitiva. Por um lado, o novo protagonismo da China é uma das questões importantes a serem destacadas, na medida em que também significou um aumento de seu Market Share na exportação de produtos manufaturados em nível do comércio mundial e o mercado latino-americano também sofre a consequência da invasão destes produtos. De outro lado, outro fator fundamental é o fato de que as grandes corporações buscaram novos espaços de acumulação, ao mesmo tempo em que consolidavam um “novo sistema internacional de produção”, organizado e networks, formando grandes redes e cadeias de negociação, de compras e de vendas.
Nova dinâmica produtiva mundial
Este é o sentido de se compreender que há uma mudança na dinâmica produtiva mundial, no comércio mundial e na forma de se comerciar. Isto significa uma mudança estrutural em nível mundial. Assim, o fato de que fica mais difícil participar de grandes negócios de comércio para quem não está participando das redes mundiais não é apenas uma questão que se circunscreve ao Brasil. Da mesma forma, a pressão de valorização do câmbio em países periféricos nos momentos de expansão da liquidez também não é uma questão que se circunscreve ao Brasil.
O que estou querendo chamar a atenção é o fato de que isto tem a ver com a nova dinâmica econômica mundial, e as dificuldades enfrentadas não estão apenas relacionadas a uma determinada política econômica. O que não quer dizer que os governos nacionais não tenham espaço de atuação. Antes pelo contrário, uma vez que as dificuldades se avolumaram, especialmente com a queda do comércio mundial e uma vez que consideramos o papel do Estado fundamental para a dinâmica econômica e com ênfase para o perfil da indústria em economias periféricas, como a brasileira.
“O período que vai do início dos anos 2000 até 2008 é de crescimento da economia mundial, mas de mudança da dinâmica competitiva”
IHU On-Line – Que medidas políticas e econômicas poderiam ter sido adotadas para sair desse modelo agroexportador?
Vanessa Petrelli – O que se percebe é que a questão do perfil da indústria nacional não esteve no centro da discussão do modelo de crescimento brasileiro. Não esteve, na segunda metade da década de 1990, quando tivemos um modelo menos centrado na intervenção do Estado e com um viés liberal. Não esteve, no modelo de crescimento que deslanchou a partir de 2003, com importante participação do Estado.
Concordo com o que foi colocado na pergunta anterior de que o próprio crescimento do Brasil “permitiu” que se “deixasse de lado” a problematização da indústria nacional. O que observamos é que a indústria brasileira, sujeita às novas dinâmicas apresentadas nas perguntas anteriores, apresentou uma “não mudança estrutural” e não acompanhou o movimento de crescimento do país. Aliás, setores foram desmantelados.
Como comentei antes, a questão do câmbio e da abertura comercial são elementos importantes a serem considerados, sendo essencial destacar que o impacto negativo de ambos vem ocorrendo paulatinamente desde a segunda metade da década de 1990. Uma vez que setores industriais são afetados (como o de bens intermediários, por exemplo), a reversão não se dá rapidamente. Neste sentido, não se deveria esperar que bastasse o movimento de desvalorização do câmbio para que houvesse uma reversão da dinâmica negativa. Este processo leva tempo, não podendo ser observado um impacto rápido da variação do câmbio sobre a indústria, o que fica ainda mais dificultado pelos impactos inflacionários e distributivos que uma desvalorização provoca. Neste sentido, um dos elementos importantes de se ter uma ação efetiva em favor da indústria nacional é o de que o foco da política macro não esteja no combate da inflação centrada na valorização do câmbio e nos juros altos.
Modelo de crescimento
Aqui um breve parêntesis, pois não se está aqui colocando que a inflação seja desconsiderada, e sim que não seja o foco central e que seja tratada em sua complexidade, entendendo-se que a mesma no Brasil é um fenômeno mais complexo do que aquele que envolve o debate do excesso de demanda. Envolve a análise da formação dos preços, de choques de custos, da análise do conflito distributivo e da verificação mais detalhada da forma pela qual a variação do câmbio afeta o preço de determinados setores, mas como, em outros, tem um viés especulativo.
Mesmo assim, quero salientar que sigo a consideração de um grupo de economistas que destaca que a questão do câmbio não basta. É preciso definir especificamente quais são os principais setores que o país não poderia deixar de estar presente em termos da dinâmica industrial. Em primeiro lugar, é essencial perceber que não é possível imaginar que o país possa avançar da industrialização de diferentes ramos. É preciso efetuar escolhas. Para isto, é preciso definir quais seriam os setores que teriam importantes encadeamentos externos e internos. No caso dos mercados externos, quais seriam os principais mercados a serem conquistados e quais seriam aqueles que não poderiam ser perdidos (os da América do Sul, por exemplo). Ou seja, seria necessário definir qual é o modelo de crescimento que se quer para o país, integrando a política industrial a este processo, o que não foi feito anteriormente.
Em segundo lugar, continua sendo essencial a questão de que o papel do Estado é central para as decisões de investimento no país. Em terceiro lugar, outro elemento importante referente à política industrial é o fato de que os apoios eventualmente efetivados pelo Estado exijam contrapartidas efetivas das indústrias residentes, uma vez que desonerações sem exigências paralelas já provaram seu efeito nefasto sobre as contas públicas, sem o paralelo efeito positivo sobre as decisões de investimento.
Note-se, no entanto, que a política de ajuste de curto prazo é incompatível com esta estratégia.
“Não é possível imaginar que o país possa avançar da industrialização de diferentes ramos”
IHU On-Line – A que atribui o fato de muitos empresários e donos de indústrias terem se transformado em rentistas? Quais as causas desse fenômeno e suas implicações para o desenvolvimento brasileiro?
Vanessa Petrelli – Não concordo com o discurso de que esta “transformação” seja recente. A economia brasileira tem, historicamente, a especificidade de oferecer alta rentabilidade na aplicação de títulos públicos, com baixíssimo risco, e isto, aliás, vem desde o final da década de 1960, com a implantação da correção monetária na compra de títulos públicos. Aliás, é interessante observar que esta institucionalidade (de correção pós-fixada) ocorreu no Brasil muito antes que tivesse sido implantada em nível mundial. No caso do país foi mais grave, pois a correção dos contratos se dava pela inflação, com o discurso de que esta correção seria “neutra”.
Não quero aqui discutir a questão da própria financeirização dos preços, mas quero destacar que esta dinâmica avançou com a evolução do capitalismo em geral e que, no Brasil, ela é especialmente forte.
Poderia dizer que um dos fenômenos mais recentes da economia brasileira é o crescimento da participação de estrangeiros no capital de empresas nacionais, sendo que isto também tem, em parte, a ver com o fenômeno da busca de aplicação financeira flexível e de alta rentabilidade. De fato, considerando a existência de mercados financeiros amplamente abertos e de investidores de diferentes perfis, tamanhos, nacionalidades, a busca de oportunidades de rentabilidade leva à forte mobilidade da aplicação de recursos em diferentes países. Para os países que apresentam grandes oportunidades de rentabilidade, os capitais fluem. Neste caso, como já disse antes, se apresentaram possibilidades de rentabilidade em empresas brasileiras, especialmente no período em que o país apresentou um vigoroso crescimento, aumentando a entrada de investimentos diretos. No entanto, para além disso, aumentou fortemente a entrada de estrangeiros na compra de ações nacionais buscando apenas ganhar com o diferencial de preços que elas poderiam gerar ou com remessas temporárias de dividendos. Ou seja, parte da compra de ações de empresas nacionais está vinculada a este tipo de capital que tem um viés especulativo e instável.
Nestes termos, de um lado, se coloca a problemática de os investidores (nacionais e estrangeiros) terem a opção no país de aplicações de alta rentabilidade e baixo risco para ser confrontada com a decisão de ter uma aplicação mais estável e ilíquida. De outro lado, coloca-se a questão de que as firmas que são Sociedades Anônimas estão recebendo maior aplicação de estrangeiros, com viés especulativo, o que é muito instável. Neste sentido, as duas dinâmicas são problemáticas. A segunda delas envolve o debate do controle de capitais; e a primeira, relacionada ao nível excessivamente alto da taxa de juros doméstica, envolve a redução da mesma e que se enfrente, mais uma vez, o debate da não centralidade do combate à inflação em conjunto com a especificidade da inflação brasileira (que não é meramente de demanda).
IHU On-Line – Alguns críticos da atual conjuntura dizem que o PT desenvolveu um projeto com base numa compreensão do Brasil dos anos 1980, sem dar conta de um contexto globalizado. Como vê essa crítica?
Vanessa Petrelli – Mais uma vez, creio que esta é uma afirmação muito simplificada. Creio que o “projeto” que definiu o modelo de crescimento brasileiro nos anos 2000 não tem a ver com a compreensão do país nos anos 1980. Na verdade se apresentaram avanços importantes no que se refere à ação do Estado em direção de ações que tiveram impactos sobre o consumo e a distribuição de renda, como o aumento real do salário mínimo e do crédito, destacando-se inclusive o papel anticíclico de bancos públicos. Um fator importante a se mencionar é que o aumento real do salário mínimo teve impactos importantes sobre as chamadas “Transferências de Assistência e Previdência” definidas basicamente pela constituição de 1988 e que são fortemente correlacionadas com os mesmos. Nestes termos, quando aumenta o salário mínimo, aumentam estas transferências, que correspondem a aproximadamente 15% do PIB. Se a isto somarmos o crédito e o próprio crescimento do emprego temos o fato de que houve um importante impacto sobre o consumo e mais uma vez sobre o emprego. Esta dinâmica distributiva não esteve em nenhum momento presente nos anos 1980 e 1990. Aliás, ela provocou uma maior participação do salário na renda. De outra parte, o papel do Estado no investimento público também foi fundamental para o crescimento. Assim, o que destaco é que a dinâmica do modelo de crescimento com forte intervenção do Estado foi bastante diferente da observada em qualquer período anterior.
Também não concordo que não se tenha levado em conta o contexto globalizado. Como citei em partes anteriores dessa entrevista, houve um crescimento das exportações brasileiras em praticamente todos os grupos de setores. O que houve foi que a inserção privilegiou a “linha de menor resistência” dos produtos primários e manufaturados ligados a recursos naturais.
Sem dúvida, quando analisamos a dinâmica recente da economia brasileira, uma crítica importante refere-se à questão da inserção do país e do não privilegiamento da melhora do perfil dessa inserção no modelo de crescimento que esteve presente, pelo menos entre 2003 e 2010, e que promoveu uma dinâmica de crescimento.
Dois modelos de Estado
No entanto, a discussão mais simplificada relativa à inserção brasileira em relação ao mundo pode levar a diferentes vertentes de interpretação. Pode levar, por exemplo, à consideração de que o melhor dos mundos é a liberalização dos mercados, cabendo ao Estado apenas os ajustes dos agregados macroeconômicos para que eles apresentem “bons fundamentos”. A partir daí, naturalmente o país se inseriria de forma mais competitiva, a partir do crescimento da competitividade e da busca de maior produtividade.
Outra vertente, diametralmente oposta, à qual me filio, acha importante indicar a ação do Estado como fundamental para a dinâmica econômica, especialmente de um país periférico como o Brasil, de ampla população, que apresenta ainda expressiva pobreza e de tamanho continental. A liberalização não leva ao crescimento equitativo intersetorial com aumento da dinâmica industrial; não leva à maior distribuição de renda, não leva à redução da pobreza.
“Não me parece que estejam politicamente dadas as condições para o efetivo avanço e implementação desse projeto de nação”
IHU On-Line – O que a história recente do nosso país mostra sobre a elaboração de um projeto de nação? O Brasil tem ou não tem um projeto de nação?
Vanessa Petrelli – Creio que estamos longe de ter um projeto de nação. Se tomarmos o período que vai de 2003 a 2010 podemos dizer que tivemos um “modelo de crescimento” que articulou o crescimento mundial a uma dinâmica do mercado interno que permitiu o crescimento com impactos de distribuição de renda. No entanto, este movimento não esteve articulado, de fato, a um projeto de nação mais amplo.
Não analisamos o fato de que os resultados distributivos alcançados são avanços, mas ainda muito insuficientes para as condições de pobreza do país. Não atacamos a questão de como atuar mantendo esta dinâmica distributiva, mesmo quando o mundo não estivesse crescendo tanto (fato que ocorreu a partir de 2008).
Neste contexto, continuamos considerando que a inflação brasileira é devida a fatores de demanda e que juros são capazes de contê-la. Com isto, continuamos mascarando os ganhos excessivos das aplicações financeiras que comprometem as contas públicas e o próprio investimento. Continuamos achando “natural” ter metas de superávit primário excluindo o pagamento de juros, sem questionar o próprio conceito das metas e desse mecanismo.
Continuamos não efetuando rupturas importantes e presos a dinâmicas políticas que limitam o avanço e a construção efetiva de um projeto de nação, deixando-nos presos a uma dinâmica de curto prazo limitada e que é incompatível com qualquer dinâmica distributiva para o país.
Dinâmica política
É verdade que, por um lado, a dinâmica política dificulta e limita os avanços da construção de um efetivo projeto de nação com a centralidade da distribuição de renda, com um grau de dinamismo interno ditado por indústrias do país. No entanto, de outro lado, a resposta das urnas na última eleição presidencial deixou claro que é necessário avançar da dinâmica distributiva, de melhores condições de acesso de saúde, educação e mobilidade urbana.
Este projeto é incompatível com liberalização de mercados, é incompatível com a não priorização dos gastos públicos. Para esta dinâmica, o crescimento é fundamental, sendo que o desemprego e a recessão são também incompatíveis com estas demandas.
Com o mundo crescendo menos e explicitando-se as não transformações internas, fica mais claro que não é mais possível conciliar os anseios de grande parte da população por melhores condições de vida, com os anseios dos rentistas ou mesmo daqueles que recebem altos ordenados e que não se incluem num projeto de nação mais justo e equitativo.
No entanto, não me parece que estejam politicamente dadas as condições para o efetivo avanço e implementação desse projeto de nação.
Texto postado originalmente em:
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/desenvolvimento-brasil-ainda-nao-tem-condicoes-de-implementar-um-projeto-de-nacao-entrevista-especial-com-vanessa-petrelli/541479

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