Hidrelétrica inunda cachoeira sagrada, retira urnas indígenas e gera crise espiritual na Amazônia
A inundação de cachoeiras sagradas, que deram lugar à construção da hidrelétrica de Teles Pires, localizada na divisa entre Pará e Mato Grosso, deu início a uma luta indígena pelo resgate das urnas funerárias que foram retiradas e levadas pelo empreendimento em 2014. Elas representam a vida dos ancestrais da etnia, que classifica o caso como “roubo” –a empresa diz que fez um “resgate” (leia mais abaixo).
A reportagem é de Carlos Madeiro, publicada por UOL, 28-07-2017.
As corredeiras Sete Quedas envolvem mais do que um local na Amazônia de guarda de restos mortais ou rituais. “Para o povo munduruku, é um lugar sagrado, onde vive a Mãe dos Peixes, um músico chamado Karupi, o espírito Karubixexé e os espíritos dos antepassados”, explica dossiê do Fórum Teles Pires, apresentado em junho, e que analisou o impacto das barragens para os indígenas.
O rio Teles Pires é afluente do rio Tapajós. A usina hidrelétrica Teles Pires foi um empreendimento contemplado no PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). Ela tem potência instalada de 1.820 megawatts –energia suficiente para abastecer uma população de 5 milhões de pessoas.
“Para nós, é como se fizessem uma construção aqui onde estão os nossos cemitérios”, compara a antropóloga Fernanda Silva, que integra o fórum e desde 2013 atua na região em projetos de fortalecimento dos direitos indígenas. “A cachoeira era a moradia dos espíritos deles, que é para lá que vão quando morrem. Para eles, é um lugar vivo”, afirma.
Silva conta que, desde que o local foi inundado para a obra, houve desorganização da vida na etnia. “Eles sofrem acidentes, isso causa brigas, desentendimentos e doenças, porque os espíritos retornam e incomodam. Eles não separam, como nós, o mudo real do espiritual; é tudo intricado. [A saída] Foi muito nociva para eles”, complementa.
Índios querem pedido de desculpas da empresa
As urnas foram retiradas da cachoeira durante os trabalhos arqueológicos da pré-obra. “Nossas urnas foram retiradas, mas nunca fomos ouvidos em nada”, diz Kabaiwun Munduruku, uma das lideranças do povo.
Desde que foram levadas, os índios –que sempre se manifestaram contra a obra– dizem que pediram, sem sucesso, para ter acesso às urnas. Cerca de 200 deles ocuparam o canteiro de obras da usina hidrelétrica de São Manoel, no último dia 15 –a obra está sendo erguida na mesma bacia e faz parte do complexo de quatro hidrelétricas.
A coordenadora da mobilização indígena, Ana Poxo, recebe o diretor da usina Antonio Brasiliano em reunião na ocupação (Foto: Caio Mota/ Fórum Teles Pires)
Os índios ficaram no local até a madrugada do dia 20, um dia após reunião que contou com empreendedores e o presidente da Funai (Fundação Nacional do Índio), Franklimberg de Freitas.
A Funai informou, em nota, que a visita foi “satisfatória” e conseguiu, entre os pontos, assegurar aos indígenas uma visita às urnas.
“Fizemos a visita, a cerimônia”, diz Kabaiwun, explicando, porém, que só devolver não é suficiente. “A gente está aqui com a expectativa de a empresa vir pedir desculpa dentro do nosso território. A gente vai estar esperando e preparando. Os pajés também vão receber os empreendedores”, afirma a líder.
Urnas estão em museu em Mato Grosso
As peças estão, desde o início do mês, em uma sala de reserva técnica do Museu de História Natural, em Alta Floresta (MT). Segundo a hidrelétrica, o local foi destinado “especialmente para sua guarda e acondicionamento”.
Depois da visita dos índios, no dia 21, ficou combinada uma futura devolução das peças. Mas o retorno não será tão simples porque o local sagrado foi destruído.
“A gente sabe que, de onde foi retirado, já foi tudo para o fundo. Essa é uma decisão [do novo local] dos pajés. Só com uma decisão deles é que podemos fazer isso. Nenhuma mulher ou cacique pode decidir”, explica Kabaiwun.
Após deixaram o museu, os pajés divulgaram carta em que relatam terem ouvido dos antepassados uma cobrança “porque suas moradias não existem mais”. “As urnas devem ser devolvidas e não ficar com Pariwat [homem branco]. Nós vamos escolher um novo local para eles”, diz.
No texto, os pajés dizem ainda que os ancestrais estavam divididos entre a alegria de rever os índios e a tristeza com a retirada forçada da cachoeira. “Os espíritos, que estão vivos, ficaram felizes com a nossa visita, [mas] eles estavam chorando e com fome, e nós oferecemos as bebidas para eles e sentimos a presença deles”, pontua.
Segundo a antropóloga Fernanda Silva, há registros de indígenas na região em períodos ancestrais. “Não tem datação exata porque não há como especificar. Mas se sabe que a região tem indígenas há séculos. Os mundurukus estão aqui há mais de 200 anos”, explica.
Hoje, segundo ela, existem cerca de 15 mil índios em 138 aldeias espalhadas por Mato Grosso, Pará e Amazonas. Por conta de estarem espalhados pela Amazônia, ela prevê consultas das aldeias aos pajés (que são orientadores espirituais dos índios) para definição do local onde irá as urnas. “É uma logística bastante complexa e é algo tão importante para eles que se reúnem em uma grande assembleia”, explica.
Protesto no canteiro de obras da usina São Manoel, no rio Teles Pires (Foto: Juliana Rosa Pesqueira/ Fórum Teles Pires)
Hidrelétrica diz que preservará peças até definição de destino
A Hidrelétrica de São Manoel informou que as urnas estariam em posse da usina de Teles Pires e que ela é que deveria se pronunciar sobre o caso.
Já a Companhia Hidrelétrica Teles Pires informou ao UOL que trata a retirada das peças como “resgate” e que os “12 vasilhames cerâmicos” foram “catalogados pela empresa Documento Cultural, responsável pelos estudos”.
Ainda segundo a empresa, o procedimento de guarda foi feito após orientações do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e do MPF (Ministério Público Federal).
A hidrelétrica ainda disse que, desde “o resgate e a catalogação, sempre manteve o material sob sua guarda em Alta Floresta, em ambiente devidamente climatizado e com umidade monitorada”. “Desse modo, até que o povo munduruku aponte o local adequado à destinação final das peças, com a concordância e anuência da Funai e do Iphan, a companhia garante a guarda e preservação dos vasilhames.”
Do Xingu ao Teles Pires: documentários retratam os impactos de grandes hidrelétricas nas vozes dos atingidos
O que Antônia, Raimunda, Giliarde e Nelson têm em comum? São brasileiros que vivem, desde o começo, o processo de implantação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, uma decisão do governo federal em seu plano energético. Elas enfrentam, junto com suas comunidades, até hoje, os efeitos socioambientais e econômicos que a instalação dessa mega obra está causando na região de Altamira, PA. É um histórico que tem repercussão internacional e capítulos de embates na justiça que continuam em curso, por meio de ações do Ministério Público Federal (MPF), suspensões de segurança a favor do empreendimento (com o argumento da obra ser de segurança nacional) e novas ações em favor das populações atingidas.
A reportagem é de Sucena Shkrada Resk, publicada por Instituto Centro de Vida, 09-12-2016
As narrativas dessas mulheres e homens se mesclam com as de autoridades e especialistas e tratam de histórias de impactos ambientais em modos de vida, na saúde, nas condições de saneamento, segurança e geração de renda de ribeirinhos, indígenas e pescadores locais. Essa mistura de fatos e sentimentos é descrita durante uma hora, no vídeo-documentário Belo Monte: depois da inundação, lançado, nesta semana, em Brasília, uma produção de Todd Southgate, do International Rivers e da Amazon Watch, com narração de Marcos Palmeira. A presença desses protagonistas “ao vivo” possibilitou a releitura de suas próprias falas, com uma carga emocional a mais que contagiou o público presente.
“Lutamos por reparação. Hoje em Altamira, a população sofre com a falta de água (potável) para viver e a violência aumentou, com drogas, assassinatos e se desencadeou um processo de doenças nas mulheres. Quase duas mil famílias ribeirinhas foram ‘jogadas’ em qualquer lugar distante do rio”, disse Antônia Melo, da coordenação do Movimento Xingu Vivo para Sempre.
Para este enfrentamento, recentemente foi criado o Conselho de Ribeirinhos, como destaca Raimunda Gomes da Silva, que também integra o grupo e o Coletivo de Mulheres de Altamira. “Eu e minha família levamos 15 anos para construir nossa casa na região e levaram tão pouco tempo para destruí-la. Já tínhamos passado pela experiência de ter sido despejados de Tucuruí (outra usina hidrelétrica no PA)”, conta.
Nelson Dias da Silva, da comunidade de Cotovelo, afirma que hoje a geração de renda se tornou muito difícil nesta região xinguana. “Eles (empresa Norte Energia, responsável pelo empreendimento) nos mandaram para um conjunto habitacional muito longe do rio. Temos de gastar com o transporte para chegar até lá e não conseguimos pegar mais peixes como antes. Hoje aparecem tucunarés pequenos. Antes tinha mais espécies”, diz.
A falta de contrapartida da Norte Energia, empresa responsável pelo empreendimento, em componente do Projeto Básico Ambiental Indígena (PBAI), é citada pelo cacique Giliarde Juruna. “Nossa aldeia não tem sequer o banheiro que ficou de ser feito e hoje o peixe curimatá sobrevive porque come lodo (se referindo ao assoreamento)”, desabafou.
Felício Pontes Júnior, procurador regional da República em Brasília, presente no evento, critica no processo de Belo Monte, o desrespeito à Convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) 169, entre outras legislações, que garantem a consulta prévia destas populações atingidas. Segundo ele, o mesmo está ocorrendo com os licenciamentos ambientais na bacia do Teles Pires, em Mato Grosso, que integra a Bacia do Tapajós e envolve os estados do Amazonas e Pará.
Esta situação, com um histórico mais recente envolvendo a UHE Teles Pires e outras hidrelétricas em curso, também se tornou tema do vídeo-documentário O Complexo, produzido este ano, com roteiro de João Andrade, coordenador de Redes Socioambientais do Instituto Centro de Vida (ICV) e de Thiago Foresti, em parceria com o Fórum Teles Pires, e apoio do ICV e do International Rivers – Brasil.
O procurador, acadêmicos, outros especialistas e atingidos (assentados, indígenas e ribeirinhos) são ouvidos neste filme de 30 minutos. O documentário revela os vícios do licenciamento, dos estudos ambientais e das compensações das obras mais caras do Brasil. O complexo reúne quatro grandes usinas hidrelétricas.
As narrativas dessas mulheres e homens se mesclam com as de autoridades e especialistas e tratam de histórias de impactos ambientais em modos de vida, na saúde, nas condições de saneamento, segurança e geração de renda de ribeirinhos, indígenas e pescadores locais. Essa mistura de fatos e sentimentos é descrita durante uma hora, no vídeo-documentário Belo Monte: depois da inundação, lançado, nesta semana, em Brasília, uma produção de Todd Southgate, do International Rivers e da Amazon Watch, com narração de Marcos Palmeira. A presença desses protagonistas “ao vivo” possibilitou a releitura de suas próprias falas, com uma carga emocional a mais que contagiou o público presente.
“Lutamos por reparação. Hoje em Altamira, a população sofre com a falta de água (potável) para viver e a violência aumentou, com drogas, assassinatos e se desencadeou um processo de doenças nas mulheres. Quase duas mil famílias ribeirinhas foram ‘jogadas’ em qualquer lugar distante do rio”, disse Antônia Melo, da coordenação do Movimento Xingu Vivo para Sempre.
Para este enfrentamento, recentemente foi criado o Conselho de Ribeirinhos, como destaca Raimunda Gomes da Silva, que também integra o grupo e o Coletivo de Mulheres de Altamira. “Eu e minha família levamos 15 anos para construir nossa casa na região e levaram tão pouco tempo para destruí-la. Já tínhamos passado pela experiência de ter sido despejados de Tucuruí (outra usina hidrelétrica no PA)”, conta.
Nelson Dias da Silva, da comunidade de Cotovelo, afirma que hoje a geração de renda se tornou muito difícil nesta região xinguana. “Eles (empresa Norte Energia, responsável pelo empreendimento) nos mandaram para um conjunto habitacional muito longe do rio. Temos de gastar com o transporte para chegar até lá e não conseguimos pegar mais peixes como antes. Hoje aparecem tucunarés pequenos. Antes tinha mais espécies”, diz.
A falta de contrapartida da Norte Energia, empresa responsável pelo empreendimento, em componente do Projeto Básico Ambiental Indígena (PBAI), é citada pelo cacique Giliarde Juruna. “Nossa aldeia não tem sequer o banheiro que ficou de ser feito e hoje o peixe curimatá sobrevive porque come lodo (se referindo ao assoreamento)”, desabafou.
Felício Pontes Júnior, procurador regional da República em Brasília, presente no evento, critica no processo de Belo Monte, o desrespeito à Convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) 169, entre outras legislações, que garantem a consulta prévia destas populações atingidas. Segundo ele, o mesmo está ocorrendo com os licenciamentos ambientais na bacia do Teles Pires, em Mato Grosso, que integra a Bacia do Tapajós e envolve os estados do Amazonas e Pará.
Esta situação, com um histórico mais recente envolvendo a UHE Teles Pires e outras hidrelétricas em curso, também se tornou tema do vídeo-documentário O Complexo, produzido este ano, com roteiro de João Andrade, coordenador de Redes Socioambientais do Instituto Centro de Vida (ICV) e de Thiago Foresti, em parceria com o Fórum Teles Pires, e apoio do ICV e do International Rivers – Brasil.
O procurador, acadêmicos, outros especialistas e atingidos (assentados, indígenas e ribeirinhos) são ouvidos neste filme de 30 minutos. O documentário revela os vícios do licenciamento, dos estudos ambientais e das compensações das obras mais caras do Brasil. O complexo reúne quatro grandes usinas hidrelétricas.
Fonte:http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/563467-do-xingu-ao-teles-pires-documentarios-retratam-os-impactos-de-grandes-hidreletricas-nas-vozes-dos-atingidos1
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