TRAGÉDIA BRASILEIRA DO CONFLITO ENTRE FACÇÕES DO LUCRATIVO TRÁFICO DE DROGAS: O ESTADO FRAGILIZADO E SEM RESPOSTA PARA A VIOLÊNCIA
“A grande tragédia brasileira é que o Estado não tem resposta para a violência”
Autora de livro sobre PCC, Camila Dias diz que não há solução de curto prazo para conflito entre facções
Desde meados de 2016, as duas maiores facções criminosas do Brasil estão rompidas. A disputa entre a facção paulista Primeiro Comando da Capital (PCC)e o Comando Vermelho (CV) está presente nos conflitos que extrapolaram as cadeias e atingem a população de Manaus, Boa Vista, Porto Velho, Natal e o Rio de Janeiro. Recentemente, o secretário de Segurança Pública e Administração Penitenciária do Goiás, Ricardo Balestreri, admitiu que a disputa entre as facções foi o principal motivo da rebelião que deixou nove mortos e 14 feridos no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia logo no primeiro dia do ano. Semanas depois, no final de janeiro, o Ceará viveu a maior chacina de sua história, com o assassinato de 14 pessoas no bairro de Cajazeiras, periferia de Fortaleza. A imprensa noticiou que os atiradores pertenciam à facção GDE (Guardiões do Estado), aliados locais do PCC, e que as vítimas participavam de um forró promovido pelo CV. A disputa do PCC pelo Estado — em que o CV era predominante — abertamente em áudios divulgados pelo UOL de um grupo de whatsapp que, segundo o portal, é de membros do PCC cearense.
Para Camila Nunes Dias, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV-USP), professora da Universidade Federal do ABC (UFABC) e autora do livro PCC: hegemonia nas prisões e monopólio da violência(Editora Saraiva), o mais preocupante é a incapacidade do Estado em se antecipar à violência gestada nas prisões. “Toda a redução ou o aumento da violência, nas ruas e nas prisões, vai depender da própria população carcerária e dos grupos criminosos”, analisa. Ela vê a disputa pelo domínio nas prisões como o principal motivo do rompimento entre os maiores grupos criminosos do país, diz não haver soluções de curto prazo para o conflito entre as facções e critica a política de guerra às drogas. “Já foi demonstrado que em nenhum lugar do mundo a guerra às drogas teve sucesso, nunca se conseguiu reduzir as demandas pelas substâncias proibidas e, portanto, ela é incapaz de impedir a comercialização”, afirma.
Quais são os principais reflexos do rompimento entre o PCC e o Comando Vermelho nas ruas e nas cadeias passados quase dois anos?
Acho que uma das questões mais centrais quando se trata a respeito dessa questão é a profunda incapacidade do Estado de garantir a segurança dos presos e das populações, sobretudo aquelas que vivem em territórios e regiões controladas por esses grupos. A gente percebe que a disseminação das facções, como esses grupos são chamados, traz um profundo impacto sobre a questão da violência de uma forma geral. Muitas vezes quando se anunciam programas que visam reduzir os homicídios e há uma queda na taxa de homicídios, por exemplo, como aconteceu no Ceará há alguns anos, essa queda muitas vezes está ligada à composição entre esses grupos, a alianças, acordos que eles fazem entre si. Como você teve o anúncio dos números do Ceará Pacífico [programa de redução da violência lançado em 2015 pelo governador Camilo Santana], por exemplo, você vê como essas políticas públicas são frágeis diante das dinâmicas das facções. Uma análise que para mim fica bastante evidente, não só diante desses acontecimentos atuais, mas pegando de uma perspectiva mais de longo prazo e cotejando isso tudo com a questão de política pública, você vê que na verdade não há política pública. Então quando a gente se vê numa situação em que os grupos deixam de conviver entre si e isso se rompe, o Estado, como não tem política pública, é incapaz de prevenir situações de extrema violência como as que estamos vendo agora no Ceará, no Rio Grande do Norte e em vários outros estados brasileiros.
Do início do ano para cá, já tivemos uma rebelião sangrenta no Goiás e, segundo a imprensa, a maior chacina da história do estado do Ceará. Ambos os episódios foram associados ao PCC e poderiam ser reflexos do rompimento com o CV. Isso sinaliza um aumento dos conflitos em nível regional por conta desse rompimento entre as facções?
Acho difícil avaliar se há uma escalada de crescimento nos conflitos. O PCC e o Comando Vermelho são dois grupos que têm uma maior presença nacional, principalmente o PCC, mas o CV também. Quando, há dois anos atrás, eles anunciaram uma ruptura, era claro que isso apontava para uma perspectiva de ter conflitos graves justamente por serem grupos de presença nacional e até então, desde a fundação do PCC – quando o Comando Vermelho já existia – eles conviviam entre si. Os presos de ambos os grupos ficavam nas mesmas penitenciárias, nas localidades onde um ou outro grupo tinha maior presença, e essa convivência era muitas vezes de colaboração, de parcerias comerciais. Quando há essa ruptura anunciada lá em junho de 2016, houve essa perspectiva de uma grande desestabilização entre os grupos criminosos dentro e fora das prisões. Os dois – CV e PCC – têm presença em quase todos os estados. E a gente vê, de 2016 para cá, que foram muitos momentos, picos de extrema violência e desestabilização. Tivemos episódios em Roraima, no Amazonas, Rio Grande do Norte, Ceará, enfim, vários estados viveram picos e crises de segurança e depois estabilizaram. Essa estabilização eu entendo que é fruto de um lado da própria ação do Estado, no sentido de apagar incêndios, e de outro lado é fruto de uma certa acomodação dos próprios grupos, afinal ninguém aguenta ficar se matando o tempo todo. Depois, ou estoura uma outra crise no mesmo local ou, como tem ocorrido de 2016 para cá, a crise e o pico de violência migram para outra localidade. Infelizmente, no Brasil, a gente não tem uma política de segurança pública e nem uma política prisional, os estados só se mexem e anunciam alguma coisa em situações de crise como essas que estamos assistindo. No Ceará, com essa crise agora, monta-se uma força-tarefa, assim como aconteceu em Alcaçuz [penitenciária estadual no Rio Grande do Norte, palco de uma rebelião que deixou 26 mortes]. Aquilo momentaneamente estabiliza, mas na verdade você não está mudando de uma maneira estrutural. Você momentaneamente segura essa tensão. Quando essas coisas acontecem, os holofotes se viram para o estados e algumas medidas emergenciais são tomadas. Os outros estados vivem situações semelhantes, mas enquanto a crise não explode, nada é feito. O que fica de tudo isso, em uma análise mais global, é que os estados não têm nenhuma capacidade de prevenir essa situação de violência – toda a redução ou o aumento da violência, nas ruas e nas prisões, vai depender da própria população carcerária e dos grupos criminosos. Essa é a grande tragédia brasileira. O Estado não tem respostas para dar a esse cenário. As respostas dadas: policiamento militarizado e mais prisões – essas são a raiz dos problemas e o Estado tem mostrado que não tem respostas.
Quais políticas devem ser levadas a cabo para que o Estado consiga se antecipar a esses picos de violência?
Não existe solução no curto prazo. Chegamos a um estágio em que temos quase 750 mil pessoas presas no país. O sistema carcerário vem crescendo assustadoramente nas últimas décadas. Alguns estados vêm investindo muito em prisões, aumentando muito a sua rede carcerária; São Paulo é um exemplo disso. Mas a gente vê que as prisões são produtoras dessa violência. Se a gente olhar nos últimos dez anos as principais crises de segurança pública que ocorreram nos estados brasileiros, elas têm como origem as prisões: desde São Paulo em 2006, passando pelo Rio de Janeiro, Santa Catarina. Estamos num estágio em que não existem ações no curto prazo que tenham capacidade de serem soluções para esses problemas, elas só apagam incêndios. Para lidar com o problema, é necessário ações de médio e longo prazo. Até parece chover no molhado, mas eu não consigo pensar em nada que não seja um investimento maciço em prevenção – no sentido de atuar nos bairros onde as populações estão mais sujeitas às ações dos grupos criminosos, especialmente com os adolescentes e crianças. É necessário evitar esse contágio, mas não de uma maneira repressiva, com a Polícia Militar, mas sim dando oportunidades: creches, escolas de qualidade, oportunidades para que eles vejam que há outras possibilidades de socialização, de valorização pessoal – o que, para um adolescente, é algo essencial -, além de investimentos em infraestrutura urbana. Isso de um lado, pensando numa perspectiva de prevenção a longo prazo. Por outro lado, numa perspectiva macro, eu não vejo como encontrar saídas para o problema da violência dos grupos organizados se não houver uma nova concepção política para lidar com a questão das drogas. É necessário uma mudança na política de drogas para acabar e interromper essa loucura, essa tragédia da guerra às drogas, que é feita com o uso intensivo de armas pesadas dos dois lados – o Estado e os grupos criminosos – para uma guerra que não tem perspectiva de ter nenhum vencedor, só há perdedores. Já foi demonstrado que em nenhum lugar do mundo a guerra às drogas teve sucesso, nunca se conseguiu reduzir as demandas pelas substâncias proibidas e, portanto, ela é incapaz de impedir a comercialização. É necessária uma política de drogas baseada, de um lado, na prevenção – da mesma maneira que foi feita com o cigarro. Nós temos um casede sucesso, que foi o cigarro, no que diz respeito às orientações e à educação para a redução do uso, as pessoas passaram a usar muito menos em relação a duas décadas atrás. As drogas precisam ser vistas como uma questão de saúde e, portanto, o comércio das drogas tem que ser regulado pelo Estado. Em nenhum lugar do mundo há uma política pública baseada na repressão que tenha gerado resultados positivos. A população carcerária presa por tráfico de drogas chega a 33% mais ou menos entre os homens; e entre as mulheres chega a 70%. Os estudos mostram que essas prisões de mulheres que, em regra são mães e têm família, leva a uma desestruturação grande dessas famílias – as prisões dos homens também, mas o impacto é maior com as mulheres. Veja: não há sentido nessa lógica, você deixa crianças sem qualquer amparo e acaba alimentando todo esse ciclo.
Outra questão relacionada ao rompimento entre o CV e o PCC seria quanto ao caráter de cada organização. Há quem diga que o PCC possui um caráter mais monopolista enquanto o CV permite uma maior autonomia das facções regionais.
O Comando Vermelho e o PCC têm formas de organização diferente. Se pensarmos em uma composição orgânica, o PCC é muito mais orgânico do que o Comando Vermelho. O PCC é de fato uma organização com estrutura própria: ele tem lideranças, chamadas de “sintonias”, tem mecanismos de controle social muito forte sobre os seus integrantes. Você olhando para a estrutura, para a forma como o PCC se ajusta e como essas dinâmicas acontecem, eles têm uma unidade. O PCC é como se fosse uma empresa: tem uma matriz que fica em São Paulo e filiais no Brasil inteiro. O PCC do Paraná, de Roraima, de Rondônia tem uma ligação orgânica com São Paulo tanto do ponto de vista econômico como político, que são as orientações da conduta de como o criminoso que pertence ao grupo tem que se comportar. O Comando Vermelho, nessa mesma analogia, é como se fosse uma empresa com várias franquias. Você tem o Comando Vermelho original que é do Rio de Janeiro, mas o Comando Vermelho de Rondônia, do Ceará, não necessariamente têm uma relação orgânica com o Rio de Janeiro, no sentido de prestar contas sobre o poderio econômico, dos números de venda de drogas, do comportamento de seus membros – esses membros nos outros estados são independentes. O Comando Vermelho do Rio de Janeiro não vai agir, digamos, se um líder do Comando Vermelho do Ceará cometer um erro de acordo com as regras da organização, vai ser o próprio CV do Ceará que vai decidir como punir isso. No PCC não, você tem uma descentralização na gestão, até pelo tamanho da organização, mas você tem instâncias vinculadas com outras que, no fim das contas, estão relacionadas à cúpula em São Paulo. Ou seja, você tem uma organicidade. No Comando Vermelho, não. Você tem autonomia nos estados, não tem uma vinculação necessária com um comando central no Rio de Janeiro.
Há algum risco de vermos no Brasil um cenário semelhante ao que ocorreu no México, com múltiplas facções dominando parcelas do território nacional e em guerra umas com as outras?
Os grupos brasileiros são bem diferentes dos cartéis mexicanos. Por exemplo, no Brasil, esses grupos foram criados dentro das prisões. Ao contrário do México, onde os cartéis já se constituíram a partir da economia da droga, no Brasil todos os grupos têm uma relação umbilical e muito forte com a prisão. A prisão os produziu. A prisão ainda é um locus principal de poder desses grupos. Essa é uma diferença importante em relação ao México. Outra diferença fundamental é que os cartéis mexicanos atuam numa rede cujo destino final é o mercado estadounidense. Eles exportam para os Estados Unidos e para outros países europeus. As facções brasileiras, ao menos até este momento, atuam predominantemente no mercado nacional – elas ainda não adquiriram esse caráter transnacional. Por mais que se fale muito, por exemplo, na transnacionalidade do PCC. Ele de fato está presente no Paraguai e na Bolívia, mas o mercado dele é o Brasil. Ele está nesses países porque são países produtores de maconha e cocaína, mas o principal mercado é o Brasil. Isso também dá uma outra dimensão ao cenário daqui. O escopo de atuação e de valores envolvidos ainda é muito diferente do das organizações mexicanas. Outro fator é que o PCC, por exemplo, possui a chamada “ética do crime” ou “disciplina”. Eles evitam a violência o quanto possível. A violência não é a primeira opção do PCC, sobretudo de 2006 para cá. A violência é sempre um elemento do qual pode ser lançado mão, mas ela nunca é a primeira opção. Por exemplo, em São Paulo, a hegemonia do PCC por aqui acabou causando a redução dos homicídios nos últimos 15 anos. Nos outros estados, há essa violência por parte do PCC porque houve essa ruptura com o Comando Vermelho. E a guerra é a guerra. Se a gente analisar o momento em que houve a ruptura, em 2016, os salves do PCC antes de formalizar o rompimento eram no sentido de tentar evitar o conflito. O PCC tem essa lógica empresarial, mas também é pautado numa ética de que o crime tem que se unir e ir contra o Estado. Sempre que é possível, eles buscam essa união. É interessante observar que o próprio PCC, antes do rompimento, tentou evitar a guerra, tentaram se comunicar com o Marcinho VP [traficante apontado como uma das principais lideranças do Comando Vermelho]. Mas até pela estrutura do Comando Vermelho, de dar autonomia a cada região, mesmo o Marcinho VP querendo, ele não tinha a capacidade de interferir nas reações dos estados. Do ponto de vista, por exemplo, do PCC seria difícil pensar num cenário como o mexicano porque o PCC, dentro de sua lógica de atuação, evita ao máximo usar a violência. Mas é claro que eles têm sim um perfil monopolista e, portanto, eles têm essa prática de avançar para mercados onde não têm uma presença significativa. Claro que, por esse perfil, eles podem vir a causar cenários de violência e competição, como o que estamos vendo hoje.
Muita gente associa o conflito na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, como um desdobramento da ruptura entre o PCC e o CV. A área seria dominada há anos pela facção ADA (Amigos dos Amigos), mas, após a prisão do traficante Nem, membro da ADA, o novo comandante da área, Rogério 157, teria se aliado ao CV. Depois do rompimento, o PCC teria então se unido à ADA e fornecido armas para retomar o território. No início do ano, houverelatos de toques de recolher nas periferias de São Paulo que estariam sendo levados à cabo pelo Comando Vermelho e a Família do Norte em associação com facções rivais ao PCC em São Paulo, como o CRBC (Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade). Há risco do conflito entre as facções assumir esse caráter de disputa territorial nas maiores cidades do país?
O cenário do Rio de Janeiro é muito complexo. Tanto que o Comando Vermelho nunca foi a única facção. Desde o surgimento do CV, no final da década de 1970, logo em seguida já surgiu uma dissidência que seria o Terceiro Comando. O Rio de Janeiro sempre viveu esse cenário de guerra entre as facções. O Terceiro Comando também teve uma dissidência, de onde surgiram os Amigos dos Amigos, depois o Terceiro Comando Puro. Então, a situação do Rio de Janeiro é muito particular, nunca houve uma facção só. A situação de São Paulo é igualmente particular. Porque desde que o PCC surgiu, não havia nenhum grupo organizado dentro das prisões, fora das prisões o tráfico era totalmente pulverizado, não tinha grupos organizados. Nesse cenário, o PCC conseguiu com sucesso eliminar os grupos que se insurgiram contra ele na década de 90 e eliminou praticamente todos esses grupos. Sobrou praticamente um grupo, que é o CRBC, que sempre teve uma atuação muito restrita. No caso dos presídios, eles sempre atuaram na penitenciária José Parada Neto, em Guarulhos, e em um ou dois outros presídios espalhados pelo estado. Se no Rio de Janeiro você tem historicamente uma situação de conflito, em São Paulo o PCC conseguiu construir uma hegemonia no estado. De fato, houve esses boatos recentemente – vídeos na internet com supostos membros do PCC sequestrando, amarrando e torturando membros supostamente ligadas a outras facções como o CV, o CRBC e a Família do Norte. Mas analisando isso, eu considero que pode ter sido mais algum caso pontual que tenha ocorrido que depois acabou gerando um boato via Whatsapp espalhando terror em algumas regiões. Mas acho muito difícil que algum desses grupos consiga se estabelecer em São Paulo porque veja, o PCC domina os presídios e são 170 unidades prisionais, 240 mil presos hoje no estado e está muito consolidado nas regiões periféricas. Além disso, o PCC é praticamente o único distribuidor de drogas aqui para São Paulo. Como é que numa situação dessas vai ser possível que outros grupos entrem em um estado em que está tudo mais ou menos equilibrado? Acho que a única possibilidade seria um racha dentro da facção, mas ainda não há nada que aponte para isso. Ou com a ajuda de forças de segurança. No caso do Rio de Janeiro, é possível. Como você tem várias facções lá, já é outro cenário. Quando o PCC rompeu com o Comando Vermelho, eles anunciaram a aproximação com a ADA. E no Rio há muita fragmentação: é como se você tivesse um sindicato de traficantes. Então o morro X é do fulano do Comando Vermelho, o morro Y é do beltrano. É muito fragmentado, é quase como se cada morro tivesse uma estrutura própria. Por exemplo, na Rocinha, o que foi noticiado é que houve um racha entre o Nem e o seu sucessor e homem de confiança, o Rogério 157. É uma ruptura entre o ex-chefe e seu subordinado que provocou aquela guerra. O fato dele ter sido ADA não teve a princípio nenhuma relação com a disputa. Agora, quando houve a ruptura os outros morros da ADA apoiaram o Nem e o Rogério, como tinha que se aliar com alguém, foi se aliar com o Comando Vermelho, um inimigo histórico da ADA. São alianças muito ocasionais. A situação do Rio é muito instável, dinâmica. As alianças são sempre muito pontuais. Agora, é possível que o PCC tenha emprestado armas para a ADA? É possível. Mas até onde eu sei, o Rio de Janeiro é um estado onde nunca houve um interesse por parte do PCC de entrar para controlar territórios, justamente por essa fragmentação. O mesmo acontece na Bahia, onde também há uma fragmentação enorme, com cinco ou seis grupos que disputam o território. O PCC não é inimigo de nenhum lá, ele fornece para todo mundo. É até estratégico. Há lugares onde não há interesse de entrar em conflito com os grupos locais. Há uma guerra tão grande que as perdas serão maiores do que os lucros, porque a situação é de muita instabilidade.
O marco da ruptura entre o PCC e o Comando Vermelho foi de fato oassassinato do traficante paraguaio Jorge Rafaat Toumani a tiros de metralhadora antiaérea por membros do PCC? Fala-se que após o assassinato de Rafaat, o PCC teria ficado com o monopólio da entrada da cocaína pela fronteira com o Paraguai, o que fez com que o CV reforçasse sua aliança com a Família do Norte para lucrar com a cocaína pela chamada rota do Rio Solimões, além das alianças com o PGC, em Santa Catarina, e o Sindicato do Crime, no Rio Grande do Norte, como uma espécie de reação. Como você avalia essa narrativa?
Na época, eu estava realizando uma pesquisa ali na região de Ponta Porã [cidade sul matogrossense vizinha ao município de Pedro Juan Cabalero, no Paraguai, onde Rafaat foi morto] e posso dizer com toda a tranquilidade que foi uma coincidência o assassinato do Rafaat e a ruptura do Comando Vermelho com o PCC. Esses fenômenos não estão diretamente relacionados. Eu entendo que a ruptura acontece por uma competição entre as facções que se dá dentro das prisões. O PCC e o Comando Vermelho passam a disputar as prisões que eles controlavam pelo batismo de novos membros, principalmente nos estados onde até então não havia facções muito estabelecidas. Essa tensão começa mais ou menos em 2015. O Comando Vermelho proíbe o PCC de batizar no Mato Grosso, o PCC proíbe o Comando Vermelho de batizar no Mato Grosso do Sul. A tensão começa antes e muito relacionada ao sistema carcerário, à disputa pela expansão no sistema carcerário, não tinha nenhuma relação com a questão de rotas do tráfico de drogas. Quando essa ruptura é anunciada, em junho de 2016, ela está ligada à questão dos presídios. Mas simultaneamente a isso, por puro acaso, o PCC também tinha há mais de uma década uma presença muito significativa sobretudo na fronteira com o Mato Grosso do Sul e o Paraná – o PCC tinha mais gente ali, mas o Comando Vermelho também tinha, não havia propriamente um monopólio. O Rafaat era um traficante, empresário entre aspas, brasileiro-paraguaio daquelas famílias típicas de região de fronteira que estava incomodado com a presença mais intensa sobretudo do PCC e por esse traço monopolista do PCC. Eles não queriam ser mais um grupo a atuar no comércio de drogas, como tantos outros que existem, a tendência deles é de tentar exercer uma hegemonia e o Rafaat não aceitava isso. No ano que antecedeu a morte dele, o Rafaat vinha sistematicamente tentando identificar e matar integrantes do PCC – e foram muitas mortes. Além disso, ele atuava junto com a polícia denunciando membros do PCC. Os grupos ligados ao PCC já tinham tentado matar o Rafaat antes, em março, por exemplo, até conseguirem em junho. Eram dinâmicas que vinham caminhando juntas, mas não havia uma relação direta de uma com a outra. É claro que indiretamente tem: você tem a pretensão monopolista do PCC presente tanto na morte do Rafaat, quando na disputa com o Comando Vermelho, mas não é uma consequência uma da outra. Sempre me coloquei contra essa análise. As informações que a gente tem não corrobora a análise de que o PCC e o Comando Vermelho romperam por causa da morte do Rafaat. Eram processos ocorrendo concomitantemente, mas com lógicas diferentes: a disputa pela população carcerária de um lado e de outro uma disputa de um núcleo local do PCC na fronteira e no Paraguai que tinha um problema com o Rafaat. Só que acabou das coisas ocorrerem concomitantemente e isso acaba acirrando tudo. Depois do anúncio da ruptura, já houve várias mortes na fronteira, mas essas sim estão relacionadas ao conflito entre as facções, mas isso foi posterior à ruptura deles nos presídios.
Fonte:https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/08/politica/1518045982_791078.html
Desde meados de 2016, as duas maiores facções criminosas do Brasil estão rompidas. A disputa entre a facção paulista Primeiro Comando da Capital (PCC)e o Comando Vermelho (CV) está presente nos conflitos que extrapolaram as cadeias e atingem a população de Manaus, Boa Vista, Porto Velho, Natal e o Rio de Janeiro. Recentemente, o secretário de Segurança Pública e Administração Penitenciária do Goiás, Ricardo Balestreri, admitiu que a disputa entre as facções foi o principal motivo da rebelião que deixou nove mortos e 14 feridos no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia logo no primeiro dia do ano. Semanas depois, no final de janeiro, o Ceará viveu a maior chacina de sua história, com o assassinato de 14 pessoas no bairro de Cajazeiras, periferia de Fortaleza. A imprensa noticiou que os atiradores pertenciam à facção GDE (Guardiões do Estado), aliados locais do PCC, e que as vítimas participavam de um forró promovido pelo CV. A disputa do PCC pelo Estado — em que o CV era predominante — abertamente em áudios divulgados pelo UOL de um grupo de whatsapp que, segundo o portal, é de membros do PCC cearense.
Para Camila Nunes Dias, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV-USP), professora da Universidade Federal do ABC (UFABC) e autora do livro PCC: hegemonia nas prisões e monopólio da violência(Editora Saraiva), o mais preocupante é a incapacidade do Estado em se antecipar à violência gestada nas prisões. “Toda a redução ou o aumento da violência, nas ruas e nas prisões, vai depender da própria população carcerária e dos grupos criminosos”, analisa. Ela vê a disputa pelo domínio nas prisões como o principal motivo do rompimento entre os maiores grupos criminosos do país, diz não haver soluções de curto prazo para o conflito entre as facções e critica a política de guerra às drogas. “Já foi demonstrado que em nenhum lugar do mundo a guerra às drogas teve sucesso, nunca se conseguiu reduzir as demandas pelas substâncias proibidas e, portanto, ela é incapaz de impedir a comercialização”, afirma.
Quais são os principais reflexos do rompimento entre o PCC e o Comando Vermelho nas ruas e nas cadeias passados quase dois anos?
Acho que uma das questões mais centrais quando se trata a respeito dessa questão é a profunda incapacidade do Estado de garantir a segurança dos presos e das populações, sobretudo aquelas que vivem em territórios e regiões controladas por esses grupos. A gente percebe que a disseminação das facções, como esses grupos são chamados, traz um profundo impacto sobre a questão da violência de uma forma geral. Muitas vezes quando se anunciam programas que visam reduzir os homicídios e há uma queda na taxa de homicídios, por exemplo, como aconteceu no Ceará há alguns anos, essa queda muitas vezes está ligada à composição entre esses grupos, a alianças, acordos que eles fazem entre si. Como você teve o anúncio dos números do Ceará Pacífico [programa de redução da violência lançado em 2015 pelo governador Camilo Santana], por exemplo, você vê como essas políticas públicas são frágeis diante das dinâmicas das facções. Uma análise que para mim fica bastante evidente, não só diante desses acontecimentos atuais, mas pegando de uma perspectiva mais de longo prazo e cotejando isso tudo com a questão de política pública, você vê que na verdade não há política pública. Então quando a gente se vê numa situação em que os grupos deixam de conviver entre si e isso se rompe, o Estado, como não tem política pública, é incapaz de prevenir situações de extrema violência como as que estamos vendo agora no Ceará, no Rio Grande do Norte e em vários outros estados brasileiros.
Do início do ano para cá, já tivemos uma rebelião sangrenta no Goiás e, segundo a imprensa, a maior chacina da história do estado do Ceará. Ambos os episódios foram associados ao PCC e poderiam ser reflexos do rompimento com o CV. Isso sinaliza um aumento dos conflitos em nível regional por conta desse rompimento entre as facções?
Acho difícil avaliar se há uma escalada de crescimento nos conflitos. O PCC e o Comando Vermelho são dois grupos que têm uma maior presença nacional, principalmente o PCC, mas o CV também. Quando, há dois anos atrás, eles anunciaram uma ruptura, era claro que isso apontava para uma perspectiva de ter conflitos graves justamente por serem grupos de presença nacional e até então, desde a fundação do PCC – quando o Comando Vermelho já existia – eles conviviam entre si. Os presos de ambos os grupos ficavam nas mesmas penitenciárias, nas localidades onde um ou outro grupo tinha maior presença, e essa convivência era muitas vezes de colaboração, de parcerias comerciais. Quando há essa ruptura anunciada lá em junho de 2016, houve essa perspectiva de uma grande desestabilização entre os grupos criminosos dentro e fora das prisões. Os dois – CV e PCC – têm presença em quase todos os estados. E a gente vê, de 2016 para cá, que foram muitos momentos, picos de extrema violência e desestabilização. Tivemos episódios em Roraima, no Amazonas, Rio Grande do Norte, Ceará, enfim, vários estados viveram picos e crises de segurança e depois estabilizaram. Essa estabilização eu entendo que é fruto de um lado da própria ação do Estado, no sentido de apagar incêndios, e de outro lado é fruto de uma certa acomodação dos próprios grupos, afinal ninguém aguenta ficar se matando o tempo todo. Depois, ou estoura uma outra crise no mesmo local ou, como tem ocorrido de 2016 para cá, a crise e o pico de violência migram para outra localidade. Infelizmente, no Brasil, a gente não tem uma política de segurança pública e nem uma política prisional, os estados só se mexem e anunciam alguma coisa em situações de crise como essas que estamos assistindo. No Ceará, com essa crise agora, monta-se uma força-tarefa, assim como aconteceu em Alcaçuz [penitenciária estadual no Rio Grande do Norte, palco de uma rebelião que deixou 26 mortes]. Aquilo momentaneamente estabiliza, mas na verdade você não está mudando de uma maneira estrutural. Você momentaneamente segura essa tensão. Quando essas coisas acontecem, os holofotes se viram para o estados e algumas medidas emergenciais são tomadas. Os outros estados vivem situações semelhantes, mas enquanto a crise não explode, nada é feito. O que fica de tudo isso, em uma análise mais global, é que os estados não têm nenhuma capacidade de prevenir essa situação de violência – toda a redução ou o aumento da violência, nas ruas e nas prisões, vai depender da própria população carcerária e dos grupos criminosos. Essa é a grande tragédia brasileira. O Estado não tem respostas para dar a esse cenário. As respostas dadas: policiamento militarizado e mais prisões – essas são a raiz dos problemas e o Estado tem mostrado que não tem respostas.
Quais políticas devem ser levadas a cabo para que o Estado consiga se antecipar a esses picos de violência?
Não existe solução no curto prazo. Chegamos a um estágio em que temos quase 750 mil pessoas presas no país. O sistema carcerário vem crescendo assustadoramente nas últimas décadas. Alguns estados vêm investindo muito em prisões, aumentando muito a sua rede carcerária; São Paulo é um exemplo disso. Mas a gente vê que as prisões são produtoras dessa violência. Se a gente olhar nos últimos dez anos as principais crises de segurança pública que ocorreram nos estados brasileiros, elas têm como origem as prisões: desde São Paulo em 2006, passando pelo Rio de Janeiro, Santa Catarina. Estamos num estágio em que não existem ações no curto prazo que tenham capacidade de serem soluções para esses problemas, elas só apagam incêndios. Para lidar com o problema, é necessário ações de médio e longo prazo. Até parece chover no molhado, mas eu não consigo pensar em nada que não seja um investimento maciço em prevenção – no sentido de atuar nos bairros onde as populações estão mais sujeitas às ações dos grupos criminosos, especialmente com os adolescentes e crianças. É necessário evitar esse contágio, mas não de uma maneira repressiva, com a Polícia Militar, mas sim dando oportunidades: creches, escolas de qualidade, oportunidades para que eles vejam que há outras possibilidades de socialização, de valorização pessoal – o que, para um adolescente, é algo essencial -, além de investimentos em infraestrutura urbana. Isso de um lado, pensando numa perspectiva de prevenção a longo prazo. Por outro lado, numa perspectiva macro, eu não vejo como encontrar saídas para o problema da violência dos grupos organizados se não houver uma nova concepção política para lidar com a questão das drogas. É necessário uma mudança na política de drogas para acabar e interromper essa loucura, essa tragédia da guerra às drogas, que é feita com o uso intensivo de armas pesadas dos dois lados – o Estado e os grupos criminosos – para uma guerra que não tem perspectiva de ter nenhum vencedor, só há perdedores. Já foi demonstrado que em nenhum lugar do mundo a guerra às drogas teve sucesso, nunca se conseguiu reduzir as demandas pelas substâncias proibidas e, portanto, ela é incapaz de impedir a comercialização. É necessária uma política de drogas baseada, de um lado, na prevenção – da mesma maneira que foi feita com o cigarro. Nós temos um casede sucesso, que foi o cigarro, no que diz respeito às orientações e à educação para a redução do uso, as pessoas passaram a usar muito menos em relação a duas décadas atrás. As drogas precisam ser vistas como uma questão de saúde e, portanto, o comércio das drogas tem que ser regulado pelo Estado. Em nenhum lugar do mundo há uma política pública baseada na repressão que tenha gerado resultados positivos. A população carcerária presa por tráfico de drogas chega a 33% mais ou menos entre os homens; e entre as mulheres chega a 70%. Os estudos mostram que essas prisões de mulheres que, em regra são mães e têm família, leva a uma desestruturação grande dessas famílias – as prisões dos homens também, mas o impacto é maior com as mulheres. Veja: não há sentido nessa lógica, você deixa crianças sem qualquer amparo e acaba alimentando todo esse ciclo.
Outra questão relacionada ao rompimento entre o CV e o PCC seria quanto ao caráter de cada organização. Há quem diga que o PCC possui um caráter mais monopolista enquanto o CV permite uma maior autonomia das facções regionais.
O Comando Vermelho e o PCC têm formas de organização diferente. Se pensarmos em uma composição orgânica, o PCC é muito mais orgânico do que o Comando Vermelho. O PCC é de fato uma organização com estrutura própria: ele tem lideranças, chamadas de “sintonias”, tem mecanismos de controle social muito forte sobre os seus integrantes. Você olhando para a estrutura, para a forma como o PCC se ajusta e como essas dinâmicas acontecem, eles têm uma unidade. O PCC é como se fosse uma empresa: tem uma matriz que fica em São Paulo e filiais no Brasil inteiro. O PCC do Paraná, de Roraima, de Rondônia tem uma ligação orgânica com São Paulo tanto do ponto de vista econômico como político, que são as orientações da conduta de como o criminoso que pertence ao grupo tem que se comportar. O Comando Vermelho, nessa mesma analogia, é como se fosse uma empresa com várias franquias. Você tem o Comando Vermelho original que é do Rio de Janeiro, mas o Comando Vermelho de Rondônia, do Ceará, não necessariamente têm uma relação orgânica com o Rio de Janeiro, no sentido de prestar contas sobre o poderio econômico, dos números de venda de drogas, do comportamento de seus membros – esses membros nos outros estados são independentes. O Comando Vermelho do Rio de Janeiro não vai agir, digamos, se um líder do Comando Vermelho do Ceará cometer um erro de acordo com as regras da organização, vai ser o próprio CV do Ceará que vai decidir como punir isso. No PCC não, você tem uma descentralização na gestão, até pelo tamanho da organização, mas você tem instâncias vinculadas com outras que, no fim das contas, estão relacionadas à cúpula em São Paulo. Ou seja, você tem uma organicidade. No Comando Vermelho, não. Você tem autonomia nos estados, não tem uma vinculação necessária com um comando central no Rio de Janeiro.
Há algum risco de vermos no Brasil um cenário semelhante ao que ocorreu no México, com múltiplas facções dominando parcelas do território nacional e em guerra umas com as outras?
Os grupos brasileiros são bem diferentes dos cartéis mexicanos. Por exemplo, no Brasil, esses grupos foram criados dentro das prisões. Ao contrário do México, onde os cartéis já se constituíram a partir da economia da droga, no Brasil todos os grupos têm uma relação umbilical e muito forte com a prisão. A prisão os produziu. A prisão ainda é um locus principal de poder desses grupos. Essa é uma diferença importante em relação ao México. Outra diferença fundamental é que os cartéis mexicanos atuam numa rede cujo destino final é o mercado estadounidense. Eles exportam para os Estados Unidos e para outros países europeus. As facções brasileiras, ao menos até este momento, atuam predominantemente no mercado nacional – elas ainda não adquiriram esse caráter transnacional. Por mais que se fale muito, por exemplo, na transnacionalidade do PCC. Ele de fato está presente no Paraguai e na Bolívia, mas o mercado dele é o Brasil. Ele está nesses países porque são países produtores de maconha e cocaína, mas o principal mercado é o Brasil. Isso também dá uma outra dimensão ao cenário daqui. O escopo de atuação e de valores envolvidos ainda é muito diferente do das organizações mexicanas. Outro fator é que o PCC, por exemplo, possui a chamada “ética do crime” ou “disciplina”. Eles evitam a violência o quanto possível. A violência não é a primeira opção do PCC, sobretudo de 2006 para cá. A violência é sempre um elemento do qual pode ser lançado mão, mas ela nunca é a primeira opção. Por exemplo, em São Paulo, a hegemonia do PCC por aqui acabou causando a redução dos homicídios nos últimos 15 anos. Nos outros estados, há essa violência por parte do PCC porque houve essa ruptura com o Comando Vermelho. E a guerra é a guerra. Se a gente analisar o momento em que houve a ruptura, em 2016, os salves do PCC antes de formalizar o rompimento eram no sentido de tentar evitar o conflito. O PCC tem essa lógica empresarial, mas também é pautado numa ética de que o crime tem que se unir e ir contra o Estado. Sempre que é possível, eles buscam essa união. É interessante observar que o próprio PCC, antes do rompimento, tentou evitar a guerra, tentaram se comunicar com o Marcinho VP [traficante apontado como uma das principais lideranças do Comando Vermelho]. Mas até pela estrutura do Comando Vermelho, de dar autonomia a cada região, mesmo o Marcinho VP querendo, ele não tinha a capacidade de interferir nas reações dos estados. Do ponto de vista, por exemplo, do PCC seria difícil pensar num cenário como o mexicano porque o PCC, dentro de sua lógica de atuação, evita ao máximo usar a violência. Mas é claro que eles têm sim um perfil monopolista e, portanto, eles têm essa prática de avançar para mercados onde não têm uma presença significativa. Claro que, por esse perfil, eles podem vir a causar cenários de violência e competição, como o que estamos vendo hoje.
Muita gente associa o conflito na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, como um desdobramento da ruptura entre o PCC e o CV. A área seria dominada há anos pela facção ADA (Amigos dos Amigos), mas, após a prisão do traficante Nem, membro da ADA, o novo comandante da área, Rogério 157, teria se aliado ao CV. Depois do rompimento, o PCC teria então se unido à ADA e fornecido armas para retomar o território. No início do ano, houverelatos de toques de recolher nas periferias de São Paulo que estariam sendo levados à cabo pelo Comando Vermelho e a Família do Norte em associação com facções rivais ao PCC em São Paulo, como o CRBC (Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade). Há risco do conflito entre as facções assumir esse caráter de disputa territorial nas maiores cidades do país?
O cenário do Rio de Janeiro é muito complexo. Tanto que o Comando Vermelho nunca foi a única facção. Desde o surgimento do CV, no final da década de 1970, logo em seguida já surgiu uma dissidência que seria o Terceiro Comando. O Rio de Janeiro sempre viveu esse cenário de guerra entre as facções. O Terceiro Comando também teve uma dissidência, de onde surgiram os Amigos dos Amigos, depois o Terceiro Comando Puro. Então, a situação do Rio de Janeiro é muito particular, nunca houve uma facção só. A situação de São Paulo é igualmente particular. Porque desde que o PCC surgiu, não havia nenhum grupo organizado dentro das prisões, fora das prisões o tráfico era totalmente pulverizado, não tinha grupos organizados. Nesse cenário, o PCC conseguiu com sucesso eliminar os grupos que se insurgiram contra ele na década de 90 e eliminou praticamente todos esses grupos. Sobrou praticamente um grupo, que é o CRBC, que sempre teve uma atuação muito restrita. No caso dos presídios, eles sempre atuaram na penitenciária José Parada Neto, em Guarulhos, e em um ou dois outros presídios espalhados pelo estado. Se no Rio de Janeiro você tem historicamente uma situação de conflito, em São Paulo o PCC conseguiu construir uma hegemonia no estado. De fato, houve esses boatos recentemente – vídeos na internet com supostos membros do PCC sequestrando, amarrando e torturando membros supostamente ligadas a outras facções como o CV, o CRBC e a Família do Norte. Mas analisando isso, eu considero que pode ter sido mais algum caso pontual que tenha ocorrido que depois acabou gerando um boato via Whatsapp espalhando terror em algumas regiões. Mas acho muito difícil que algum desses grupos consiga se estabelecer em São Paulo porque veja, o PCC domina os presídios e são 170 unidades prisionais, 240 mil presos hoje no estado e está muito consolidado nas regiões periféricas. Além disso, o PCC é praticamente o único distribuidor de drogas aqui para São Paulo. Como é que numa situação dessas vai ser possível que outros grupos entrem em um estado em que está tudo mais ou menos equilibrado? Acho que a única possibilidade seria um racha dentro da facção, mas ainda não há nada que aponte para isso. Ou com a ajuda de forças de segurança. No caso do Rio de Janeiro, é possível. Como você tem várias facções lá, já é outro cenário. Quando o PCC rompeu com o Comando Vermelho, eles anunciaram a aproximação com a ADA. E no Rio há muita fragmentação: é como se você tivesse um sindicato de traficantes. Então o morro X é do fulano do Comando Vermelho, o morro Y é do beltrano. É muito fragmentado, é quase como se cada morro tivesse uma estrutura própria. Por exemplo, na Rocinha, o que foi noticiado é que houve um racha entre o Nem e o seu sucessor e homem de confiança, o Rogério 157. É uma ruptura entre o ex-chefe e seu subordinado que provocou aquela guerra. O fato dele ter sido ADA não teve a princípio nenhuma relação com a disputa. Agora, quando houve a ruptura os outros morros da ADA apoiaram o Nem e o Rogério, como tinha que se aliar com alguém, foi se aliar com o Comando Vermelho, um inimigo histórico da ADA. São alianças muito ocasionais. A situação do Rio é muito instável, dinâmica. As alianças são sempre muito pontuais. Agora, é possível que o PCC tenha emprestado armas para a ADA? É possível. Mas até onde eu sei, o Rio de Janeiro é um estado onde nunca houve um interesse por parte do PCC de entrar para controlar territórios, justamente por essa fragmentação. O mesmo acontece na Bahia, onde também há uma fragmentação enorme, com cinco ou seis grupos que disputam o território. O PCC não é inimigo de nenhum lá, ele fornece para todo mundo. É até estratégico. Há lugares onde não há interesse de entrar em conflito com os grupos locais. Há uma guerra tão grande que as perdas serão maiores do que os lucros, porque a situação é de muita instabilidade.
O marco da ruptura entre o PCC e o Comando Vermelho foi de fato oassassinato do traficante paraguaio Jorge Rafaat Toumani a tiros de metralhadora antiaérea por membros do PCC? Fala-se que após o assassinato de Rafaat, o PCC teria ficado com o monopólio da entrada da cocaína pela fronteira com o Paraguai, o que fez com que o CV reforçasse sua aliança com a Família do Norte para lucrar com a cocaína pela chamada rota do Rio Solimões, além das alianças com o PGC, em Santa Catarina, e o Sindicato do Crime, no Rio Grande do Norte, como uma espécie de reação. Como você avalia essa narrativa?
Na época, eu estava realizando uma pesquisa ali na região de Ponta Porã [cidade sul matogrossense vizinha ao município de Pedro Juan Cabalero, no Paraguai, onde Rafaat foi morto] e posso dizer com toda a tranquilidade que foi uma coincidência o assassinato do Rafaat e a ruptura do Comando Vermelho com o PCC. Esses fenômenos não estão diretamente relacionados. Eu entendo que a ruptura acontece por uma competição entre as facções que se dá dentro das prisões. O PCC e o Comando Vermelho passam a disputar as prisões que eles controlavam pelo batismo de novos membros, principalmente nos estados onde até então não havia facções muito estabelecidas. Essa tensão começa mais ou menos em 2015. O Comando Vermelho proíbe o PCC de batizar no Mato Grosso, o PCC proíbe o Comando Vermelho de batizar no Mato Grosso do Sul. A tensão começa antes e muito relacionada ao sistema carcerário, à disputa pela expansão no sistema carcerário, não tinha nenhuma relação com a questão de rotas do tráfico de drogas. Quando essa ruptura é anunciada, em junho de 2016, ela está ligada à questão dos presídios. Mas simultaneamente a isso, por puro acaso, o PCC também tinha há mais de uma década uma presença muito significativa sobretudo na fronteira com o Mato Grosso do Sul e o Paraná – o PCC tinha mais gente ali, mas o Comando Vermelho também tinha, não havia propriamente um monopólio. O Rafaat era um traficante, empresário entre aspas, brasileiro-paraguaio daquelas famílias típicas de região de fronteira que estava incomodado com a presença mais intensa sobretudo do PCC e por esse traço monopolista do PCC. Eles não queriam ser mais um grupo a atuar no comércio de drogas, como tantos outros que existem, a tendência deles é de tentar exercer uma hegemonia e o Rafaat não aceitava isso. No ano que antecedeu a morte dele, o Rafaat vinha sistematicamente tentando identificar e matar integrantes do PCC – e foram muitas mortes. Além disso, ele atuava junto com a polícia denunciando membros do PCC. Os grupos ligados ao PCC já tinham tentado matar o Rafaat antes, em março, por exemplo, até conseguirem em junho. Eram dinâmicas que vinham caminhando juntas, mas não havia uma relação direta de uma com a outra. É claro que indiretamente tem: você tem a pretensão monopolista do PCC presente tanto na morte do Rafaat, quando na disputa com o Comando Vermelho, mas não é uma consequência uma da outra. Sempre me coloquei contra essa análise. As informações que a gente tem não corrobora a análise de que o PCC e o Comando Vermelho romperam por causa da morte do Rafaat. Eram processos ocorrendo concomitantemente, mas com lógicas diferentes: a disputa pela população carcerária de um lado e de outro uma disputa de um núcleo local do PCC na fronteira e no Paraguai que tinha um problema com o Rafaat. Só que acabou das coisas ocorrerem concomitantemente e isso acaba acirrando tudo. Depois do anúncio da ruptura, já houve várias mortes na fronteira, mas essas sim estão relacionadas ao conflito entre as facções, mas isso foi posterior à ruptura deles nos presídios.
Fonte:https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/08/politica/1518045982_791078.html
Prisões em massa, o motor das facções que afetam a vida de metade dos brasileiros
Especialistas dizem que é impossível reduzir problema sem rever o endurecimento na lei antidrogas e proibição de entorpecentes
Presos são retirados de cadeia em Itapajé (CE) após massacre. WELLINGTON MACEDO EFE
SÃO PAULO
CHACINAS NAS RUAS E MASSACRES EM PRESÍDIOS MOTIVADOS POR BRIGAS ENTRE FACÇÕES CRIMINOSAS RIVAIS JÁ SE TORNARAM ROTINA NO BRASIL. PELO SEGUNDO ANO CONSECUTIVO O PAÍS VIVE UM MÊS DE JANEIRO SANGRENTO COM AS TRADICIONAIS IMAGENS DE CORPOS MUTILADOS, MANCHAS DE SANGUE NO CHÃO E PARENTES DESESPERADOS EM BUSCA DE INFORMAÇÕES. ANO PASSADO OCORREU NO AMAZONAS, RORAIMA, RIO GRANDE DO NORTE E ACRE. ESTE ANO GOIÁS E CEARÁ FORAM PALCO DA VIOLÊNCIA. COMO É DE PRAXE, NESTAS HORAS AS AUTORIDADES ANUNCIAM PACOTES DE MEDIDAS EMERGENCIAIS TAIS COMO ENVIO DE TROPAS FEDERAIS, CONSTRUÇÃO DE PRESÍDIOS E ENDURECIMENTO DAS PENAS E DA REPRESSÃO AO TRÁFICO DE DROGAS. MAS ESPECIALISTAS OUVIDOS PELO EL PAÍS APONTAM QUE ALGUMAS DESTAS SUPOSTAS SOLUÇÕES SÃO, NA VERDADE, PARTE DO PROBLEMA. PROIBIÇÃO DAS DROGAS, ENCARCERAMENTO EM MASSA E O TRATAMENTO DESUMANODENTRO DO CÁRCERE SÃO JUSTAMENTE ALGUNS DOS FATORES QUE LEVARAM AO CRESCIMENTO EXPONENCIAL E À NACIONALIZAÇÃO DO CRIME ORGANIZADO NO PAÍS. PIOR: TRAÇAM UM CENÁRIO SOMBRIO NO QUAL SÓ A REVERSÃO DESSAS MEDIDAS, ALGO QUE NÃO PARECE ESTAR NO HORIZONTE NEM NO MÉDIO PRAZO NO PAÍS, PODERIAM MITIGAR O PROBLEMA.
É UMA MÁ NOTÍCIA PARA QUASE METADE DOS BRASILEIROS QUE TÊM A PERCEPÇÃO DE VIVER EM ÁREAS SOB INFLUÊNCIA DAS FACÇÕES CRIMINOSAS. SEGUNDO LEVANTAMENTO NACIONAL DO FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA FEITA PELO INSTITUTO DATAFOLHA EM AGOSTO PASSADO, 23% DOS ENTREVISTADOS CONSIDERAM QUE É ALTA A CHANCE DE QUE O CRIME ORGANIZADO OU FACÇÃO ATUE EM SUA VIZINHANÇA. OUTROS 26% RESPONDERAM QUE A CHANCE É MÉDIA. FENÔMENO ANTES RESTRITO PRINCIPALMENTE A SÃO PAULO E RIO DE JANEIRO, HOJE AS FACÇÕES ESTÃO PRESENTES DENTRO E FORA DOS PRESÍDIOS DE TODOS OS ESTADOS – COM CONEXÕES INTERNACIONAIS NOS PRINCIPAIS PAÍSES PRODUTORES DE COCAÍNA DA AMÉRICA DO SUL.
“É PRECISO REVER A POLÍTICA DE GUERRA ÀS DROGAS, QUE NÃO DEU CERTO EM LUGAR NENHUM DO MUNDO”, DIZ CAMILA DIAS, SOCIÓLOGA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO ABC E PESQUISADORA DO NÚCLEO DE ESTUDOS DA VIOLÊNCIA DA USP. “É DIFÍCIL, QUANDO VEMOS ESTAS CENAS DE VIOLÊNCIA, TENTAR LIDAR COM ISSO DIZENDO QUE É PRECISO ROMPER COM A POLÍTICA DE ENCARCERAMENTO EM MASSA E COMBATE ÀS DROGAS. MAS SE VOCÊ OLHAR PARA AS ULTIMAS DUAS DÉCADAS, FORAM JUSTAMENTE ESTES DOIS FATORES QUE PROVOCARAM ESTA CRISE”.
O FRACASSO DA GUERRA ÀS DROGAS NO BRASIL É CONSTATADO ATÉ MESMO POR QUEM ATUA DENTRO DO ESTADO: “A GUERRA ÀS DROGAS É PERDIDA, IRRACIONAL”, AFIRMOU O EX-SECRETÁRIO DE SEGURANÇA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO JOSÉ MARIA BELTRAME EM 2015. ENQUANTO MUITOS PAÍSES COMEÇAM A FLEXIBILIZAR SUA POLÍTICA DE REPRESSÃO E PERMITIR O USO RECREATIVO DE ALGUMAS DROGAS LEVES, COMO É O CASO DA MACONHA NOS ESTADOS UNIDOS, O BRASIL CONTINUA SEGUINDO A MESMA POLÍTICA DE ENFRENTAMENTO ADOTADA NOS ANOS DE 1960. AQUI, A CHAMADA GUERRA ÀS DROGAS COMEÇOU EM 1961, ANTES MESMO DO ENTÃO PRESIDENTE DOS EUA RONALD REAGAN IR À TV EM 1986 COM SEU FAMOSO DISCURSO ANTI-DROGAS. “HOUVE UMA CONVENÇÃO NO RIO PARA DISCUTIR DROGAS E USO DE TÓXICOS. E O QUE SE SEGUIU FOI UM PROGRESSIVO ENDURECIMENTO DAS LEIS E AI O COMBATE DESLANCHOU. À PARTIR DAÍ TUDO PIOROU”, AFIRMA MICHEL MISSE, PROFESSOR TITULAR DE SOCIOLOGIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO E FUNDADOR DO NÚCLEO DE ESTUDOS EM CIDADANIA, CONFLITO E VIOLÊNCIA URBANA.
ELA [A LEGALIZAÇÃO] É ESTRATÉGICA, NÃO SÓ PARA O FUNCIONAMENTO DA JUSTIÇA E PARA A PACIFICAÇÃO DAS RELAÇÃO SOCIAIS. MAS NA AMÉRICA LATINA É POSSÍVEL DIZER QUE O ESTADO DE DIREITO DEPENDE DISSO
MESMO NO PERÍODO DEMOCRÁTICO A LEGISLAÇÃO MANTEVE O VIÉS DE ENFRENTAMENTO. A LEI DE DROGAS SANCIONADA PELO ENTÃO PRESIDENTE LULAEM 2006 ENDURECEU A PENA PARA O PEQUENO TRAFICANTE SOB O VERNIZ DE FAZER A DISTINÇÃO ENTRE USUÁRIOS E TRAFICANTES. NA PRÁTICA, O LOCAL DE RESIDÊNCIA DA PESSOA DETIDA PELA POLÍCIA CONTINUA SENDO O PARÂMETRO USADO PELA POLÍCIA E PELO JUDICIÁRIO PARA DISTINGUIR O PRIMEIRO DO SEGUNDO. “PARA DETERMINAR SE A DROGA DESTINAVA-SE A CONSUMO PESSOAL, O JUIZ ATENDERÁ À NATUREZA E À QUANTIDADE DA SUBSTÂNCIA APREENDIDA, AO LOCAL E ÀS CONDIÇÕES EM QUE SE DESENVOLVEU A AÇÃO, ÀS CIRCUNSTÂNCIAS SOCIAIS E PESSOAIS, BEM COMO À CONDUTA E AOS ANTECEDENTES DO AGENTE”, DIZ O ARTIGO 27 DA LEI. “COMO A LEI NÃO ESPECIFICA A PARTIR DE QUAL QUANTIDADE DE POSSE VOCÊ É TRAFICANTE OU USUÁRIO ACABA FICANDO A CRITÉRIO DOS AGENTES PÚBLICOS”, AFIRMA MISSE.
O PROFESSOR DEFENDE A LEGALIZAÇÃO DAS DROGAS COMO ÚNICA SOLUÇÃO POSSÍVEL PARA ROMPER O CICLO DE VIOLÊNCIA. “ELA [A LEGALIZAÇÃO] É ESTRATÉGICA, NÃO SÓ PARA O FUNCIONAMENTO DA JUSTIÇA E PARA A PACIFICAÇÃO DAS RELAÇÃO SOCIAIS. MAS NA AMÉRICA LATINA É POSSÍVEL DIZER QUE O ESTADO DE DIREITO DEPENDE DISSO. ISSO É PONTO PACÍFICO, É CONSENSO NA ACADEMIA”, AFIRMA MISSE. ELE, NO ENTANTO, É PESSIMISTA QUANTO À POSSIBILIDADE DA LEGALIZAÇÃO AVANÇAR NO BRASIL, SEJA VIA PODER LEGISLATIVO SEJA VIA SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. “SOMOS UM PAÍS CONSERVADOR. VEJA O TEMPO QUE DEMOROU PARA APROVARMOS UMA LEI DO DIVÓRCIO! [A LEI DO DIVÓRCIO BRASILEIRA É DE 1977]”. O STF CHEGOU A DISCUTIR A DESCRIMINALIZAÇÃO DA MACONHA, MAS A VOTAÇÃO FOI SUSPENSA EM AGOSTO DE 2017 APÓS O FALECIDO MINISTRO TEORI ZAVASCKI PEDIR MAIS TEMPO PARA ANALISAR O TEMA. O PLACAR ESTAVA 3 A 0 PARA A DESCRIMINALIZAÇÃO.
Presos são retirados de cadeia em Itapajé (CE) após massacre. WELLINGTON MACEDO EFE
SÃO PAULO
CHACINAS NAS RUAS E MASSACRES EM PRESÍDIOS MOTIVADOS POR BRIGAS ENTRE FACÇÕES CRIMINOSAS RIVAIS JÁ SE TORNARAM ROTINA NO BRASIL. PELO SEGUNDO ANO CONSECUTIVO O PAÍS VIVE UM MÊS DE JANEIRO SANGRENTO COM AS TRADICIONAIS IMAGENS DE CORPOS MUTILADOS, MANCHAS DE SANGUE NO CHÃO E PARENTES DESESPERADOS EM BUSCA DE INFORMAÇÕES. ANO PASSADO OCORREU NO AMAZONAS, RORAIMA, RIO GRANDE DO NORTE E ACRE. ESTE ANO GOIÁS E CEARÁ FORAM PALCO DA VIOLÊNCIA. COMO É DE PRAXE, NESTAS HORAS AS AUTORIDADES ANUNCIAM PACOTES DE MEDIDAS EMERGENCIAIS TAIS COMO ENVIO DE TROPAS FEDERAIS, CONSTRUÇÃO DE PRESÍDIOS E ENDURECIMENTO DAS PENAS E DA REPRESSÃO AO TRÁFICO DE DROGAS. MAS ESPECIALISTAS OUVIDOS PELO EL PAÍS APONTAM QUE ALGUMAS DESTAS SUPOSTAS SOLUÇÕES SÃO, NA VERDADE, PARTE DO PROBLEMA. PROIBIÇÃO DAS DROGAS, ENCARCERAMENTO EM MASSA E O TRATAMENTO DESUMANODENTRO DO CÁRCERE SÃO JUSTAMENTE ALGUNS DOS FATORES QUE LEVARAM AO CRESCIMENTO EXPONENCIAL E À NACIONALIZAÇÃO DO CRIME ORGANIZADO NO PAÍS. PIOR: TRAÇAM UM CENÁRIO SOMBRIO NO QUAL SÓ A REVERSÃO DESSAS MEDIDAS, ALGO QUE NÃO PARECE ESTAR NO HORIZONTE NEM NO MÉDIO PRAZO NO PAÍS, PODERIAM MITIGAR O PROBLEMA.
É UMA MÁ NOTÍCIA PARA QUASE METADE DOS BRASILEIROS QUE TÊM A PERCEPÇÃO DE VIVER EM ÁREAS SOB INFLUÊNCIA DAS FACÇÕES CRIMINOSAS. SEGUNDO LEVANTAMENTO NACIONAL DO FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA FEITA PELO INSTITUTO DATAFOLHA EM AGOSTO PASSADO, 23% DOS ENTREVISTADOS CONSIDERAM QUE É ALTA A CHANCE DE QUE O CRIME ORGANIZADO OU FACÇÃO ATUE EM SUA VIZINHANÇA. OUTROS 26% RESPONDERAM QUE A CHANCE É MÉDIA. FENÔMENO ANTES RESTRITO PRINCIPALMENTE A SÃO PAULO E RIO DE JANEIRO, HOJE AS FACÇÕES ESTÃO PRESENTES DENTRO E FORA DOS PRESÍDIOS DE TODOS OS ESTADOS – COM CONEXÕES INTERNACIONAIS NOS PRINCIPAIS PAÍSES PRODUTORES DE COCAÍNA DA AMÉRICA DO SUL.
“É PRECISO REVER A POLÍTICA DE GUERRA ÀS DROGAS, QUE NÃO DEU CERTO EM LUGAR NENHUM DO MUNDO”, DIZ CAMILA DIAS, SOCIÓLOGA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO ABC E PESQUISADORA DO NÚCLEO DE ESTUDOS DA VIOLÊNCIA DA USP. “É DIFÍCIL, QUANDO VEMOS ESTAS CENAS DE VIOLÊNCIA, TENTAR LIDAR COM ISSO DIZENDO QUE É PRECISO ROMPER COM A POLÍTICA DE ENCARCERAMENTO EM MASSA E COMBATE ÀS DROGAS. MAS SE VOCÊ OLHAR PARA AS ULTIMAS DUAS DÉCADAS, FORAM JUSTAMENTE ESTES DOIS FATORES QUE PROVOCARAM ESTA CRISE”.
O FRACASSO DA GUERRA ÀS DROGAS NO BRASIL É CONSTATADO ATÉ MESMO POR QUEM ATUA DENTRO DO ESTADO: “A GUERRA ÀS DROGAS É PERDIDA, IRRACIONAL”, AFIRMOU O EX-SECRETÁRIO DE SEGURANÇA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO JOSÉ MARIA BELTRAME EM 2015. ENQUANTO MUITOS PAÍSES COMEÇAM A FLEXIBILIZAR SUA POLÍTICA DE REPRESSÃO E PERMITIR O USO RECREATIVO DE ALGUMAS DROGAS LEVES, COMO É O CASO DA MACONHA NOS ESTADOS UNIDOS, O BRASIL CONTINUA SEGUINDO A MESMA POLÍTICA DE ENFRENTAMENTO ADOTADA NOS ANOS DE 1960. AQUI, A CHAMADA GUERRA ÀS DROGAS COMEÇOU EM 1961, ANTES MESMO DO ENTÃO PRESIDENTE DOS EUA RONALD REAGAN IR À TV EM 1986 COM SEU FAMOSO DISCURSO ANTI-DROGAS. “HOUVE UMA CONVENÇÃO NO RIO PARA DISCUTIR DROGAS E USO DE TÓXICOS. E O QUE SE SEGUIU FOI UM PROGRESSIVO ENDURECIMENTO DAS LEIS E AI O COMBATE DESLANCHOU. À PARTIR DAÍ TUDO PIOROU”, AFIRMA MICHEL MISSE, PROFESSOR TITULAR DE SOCIOLOGIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO E FUNDADOR DO NÚCLEO DE ESTUDOS EM CIDADANIA, CONFLITO E VIOLÊNCIA URBANA.
ELA [A LEGALIZAÇÃO] É ESTRATÉGICA, NÃO SÓ PARA O FUNCIONAMENTO DA JUSTIÇA E PARA A PACIFICAÇÃO DAS RELAÇÃO SOCIAIS. MAS NA AMÉRICA LATINA É POSSÍVEL DIZER QUE O ESTADO DE DIREITO DEPENDE DISSO
MESMO NO PERÍODO DEMOCRÁTICO A LEGISLAÇÃO MANTEVE O VIÉS DE ENFRENTAMENTO. A LEI DE DROGAS SANCIONADA PELO ENTÃO PRESIDENTE LULAEM 2006 ENDURECEU A PENA PARA O PEQUENO TRAFICANTE SOB O VERNIZ DE FAZER A DISTINÇÃO ENTRE USUÁRIOS E TRAFICANTES. NA PRÁTICA, O LOCAL DE RESIDÊNCIA DA PESSOA DETIDA PELA POLÍCIA CONTINUA SENDO O PARÂMETRO USADO PELA POLÍCIA E PELO JUDICIÁRIO PARA DISTINGUIR O PRIMEIRO DO SEGUNDO. “PARA DETERMINAR SE A DROGA DESTINAVA-SE A CONSUMO PESSOAL, O JUIZ ATENDERÁ À NATUREZA E À QUANTIDADE DA SUBSTÂNCIA APREENDIDA, AO LOCAL E ÀS CONDIÇÕES EM QUE SE DESENVOLVEU A AÇÃO, ÀS CIRCUNSTÂNCIAS SOCIAIS E PESSOAIS, BEM COMO À CONDUTA E AOS ANTECEDENTES DO AGENTE”, DIZ O ARTIGO 27 DA LEI. “COMO A LEI NÃO ESPECIFICA A PARTIR DE QUAL QUANTIDADE DE POSSE VOCÊ É TRAFICANTE OU USUÁRIO ACABA FICANDO A CRITÉRIO DOS AGENTES PÚBLICOS”, AFIRMA MISSE.
O PROFESSOR DEFENDE A LEGALIZAÇÃO DAS DROGAS COMO ÚNICA SOLUÇÃO POSSÍVEL PARA ROMPER O CICLO DE VIOLÊNCIA. “ELA [A LEGALIZAÇÃO] É ESTRATÉGICA, NÃO SÓ PARA O FUNCIONAMENTO DA JUSTIÇA E PARA A PACIFICAÇÃO DAS RELAÇÃO SOCIAIS. MAS NA AMÉRICA LATINA É POSSÍVEL DIZER QUE O ESTADO DE DIREITO DEPENDE DISSO. ISSO É PONTO PACÍFICO, É CONSENSO NA ACADEMIA”, AFIRMA MISSE. ELE, NO ENTANTO, É PESSIMISTA QUANTO À POSSIBILIDADE DA LEGALIZAÇÃO AVANÇAR NO BRASIL, SEJA VIA PODER LEGISLATIVO SEJA VIA SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. “SOMOS UM PAÍS CONSERVADOR. VEJA O TEMPO QUE DEMOROU PARA APROVARMOS UMA LEI DO DIVÓRCIO! [A LEI DO DIVÓRCIO BRASILEIRA É DE 1977]”. O STF CHEGOU A DISCUTIR A DESCRIMINALIZAÇÃO DA MACONHA, MAS A VOTAÇÃO FOI SUSPENSA EM AGOSTO DE 2017 APÓS O FALECIDO MINISTRO TEORI ZAVASCKI PEDIR MAIS TEMPO PARA ANALISAR O TEMA. O PLACAR ESTAVA 3 A 0 PARA A DESCRIMINALIZAÇÃO.
ENCARCERAMENTO EM MASSA E A “FALÁCIA” DE CONSTRUIR PRESÍDIOS
O FORTALECIMENTO DAS FACÇÕES CRIMINOSAS NO BRASIL ANDOU DE MÃOS DADAS COM O AUMENTO VERTIGINOSO DO NÚMERO DE PRESOS NO PAÍS, NO PERÍODO DE 1990 ATÉ OS DIAS ATUAIS. SE 15 ANOS ATRÁS O PROBLEMA ERA CIRCUNSCRITO PRINCIPALMENTE AO RIO DE JANEIRO E SÃO PAULO, HOJE É CORRETO AFIRMAR QUE PRIMEIRO COMANDO DA CAPITALE COMANDO VERMELHO - AS DUAS MAIORES FACÇÕES BRASILEIRAS - ESTÃO PRESENTES EM QUASE TODOS OS ESTADOS. PARA O PROFESSOR MISSE O CÁRCERE ESTÁ LIGADO UMBILICALMENTE ÀS FACÇÕES. “O PROCESSO DO CRIME ORGANIZADO AQUI SE DÁ SEMPRE A PARTIR DO SISTEMA PENITENCIÁRIO. ENQUANTO EM OUTROS PAÍSES AS ORGANIZAÇÕES LIGADAS A MERCADOS ILEGAIS SE ORGANIZAM FORA DO SISTEMA, NAS RUAS, AQUI SÃO OS PRESÍDIOS QUE POTENCIALIZAM ESTAS REDES DE CONTATOS E PERMITEM A ATUAÇÃO NESTES MERCADOS ILEGAIS”, AFIRMA.
O BRASIL TEM A TERCEIRA MAIOR POPULAÇÃO CARCERÁRIA DO MUNDO, COM CERCA DE 726.712 PESSOAS TRANCADAS, ATRÁS APENAS DOS ESTADOS UNIDOS E DA CHINA. NOS ÚLTIMOS DEZ ANOS, ESTE NÚMERO MAIS DO QUE DOBROU. E, NO ENTANTO, DIFICILMENTE ALGUÉM DIRÁ QUE SE SENTE MAIS SEGURO. ALÉM DISSO OS INDICADORES CRIMINAIS TAMBÉM NÃO APRESENTARAM MELHORAS NO PAÍS. PELO CONTRÁRIO, APESAR DE TERMOS UMA ENORME QUANTIDADE DE PESSOAS PRESAS, AS TAXAS DE HOMICÍDIO AINDA CRESCEM. “NÓS PRENDEMOS MUITO E PRENDEMOS MAU. NÓS NÃO PRENDEMOS OS PRINCIPAIS FORNECEDORES, OS ATACADISTAS, PRENDEMOS OS VAREJISTAS E OLHE LÁ. EM GERAL NÓS PRENDEMOS A PONTA DO VAREJO. VOCÊ NÃO TEM EFICÁCIA NENHUMA COM RELAÇÃO A ESTE COMBATE”, DIZ MISSE. PARA O SOCIÓLOGO, TENTAR CONTROLAR COMPLETAMENTE A ENTRADA DESTAS SUBSTÂNCIAS NO PAÍS SERIA COMO “ENXUGAR GELO”: “NÃO HÁ TRABALHO DE INTELIGÊNCIA SISTEMÁTICO QUE SEJA CAPAZ DE IDENTIFICAR A CHEGADA DE DROGAS E ARMAS POR TODAS AS FRONTEIRAS BRASILEIRAS, SEJAM SECAS, AÉREAS OU MARÍTIMAS”.
A SOCIÓLOGA CAMILA DIAS, QUE PESQUISOU A FUNDO AS DINÂMICAS DO PCC, AFIRMA QUE “O PROBLEMA DAS FACÇÕES FOI SENDO FORJADO PELAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE TODOS OS ESTADOS DO BRASIL”. DE ACORDO COM ELA, FOI FEITA UMA APOSTA NO ENCARCERAMENTO COMO FORMA DE RESOLVER O PROBLEMA DA SEGURANÇA. “A PARTIR DOS ANOS 2000 ISSO PASSOU A SER UMA PRIORIDADE DOS ESTADOS”, DIZ. A CADA NOVO PRESÍDIO, ABRIA-SE O CAMPO PARA A INFLUÊNCIA DO CRIME ORGANIZADO. “AO CONSTRUIR NOVAS UNIDADES VOCÊ AMPLIA AS REDES PELAS QUAIS OS GRUPOS SE ARTICULAM”, DIZ. PARA ELA
A CADA NOVO PRESÍDIO, ABRIA-SE O CAMPO PARA A INFLUÊNCIA DO CRIME ORGANIZADO
OUTRO PECULIARIDADE DO NOSSO SISTEMA CARCERÁRIO É A GRANDE QUANTIDADE DE PRESOS PROVISÓRIOS, OU SEJA, QUE AINDA NÃO FORAM CONDENADOS. ELES REPRESENTAM 49% DA POPULAÇÃO TOTAL ATRÁS DAS GRADES. DE ACORDO COM O CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 29% DESTES PRESOS PROVISÓRIOS SÃO ACUSADOS DE TRÁFICO DE DROGAS. O CONSELHO REALIZA MUTIRÕES ANUAIS PARA AVALIAR A SITUAÇÃO DESTES DETIDOS: EM 2017 UMA AÇÃO BATIZADA DE “CHOQUE DE JUSTIÇA” ABSOLVEU MAIS DE 4.500 PRESOS PROVISÓRIOS E REVOGOU A PRISÃO DE OUTROS 21.700, QUE PODERÃO AGUARDAR O JULGAMENTO EM CASA.
“PRESÍDIOS SÃO LOCAIS QUE DEVERIAM SER RESERVADOS A CRIMINOSOS MUITO PERIGOSOS, QUE FELIZMENTE SÃO UMA MINORIA NO PAÍS”, DEFENDE MISSE. O QUE OCORRE AQUI, NO ENTANTO, É QUE “O SISTEMA PENITENCIÁRIO ESTÁ SENDO UTILIZADO PARA PRENDER QUALQUER PESSOA QUE PARTICIPE DE MERCADOS ILEGAIS: AÍ NÃO ACABA NUNCA. VOCÊ CONSTRÓI PRESÍDIO E ELE ENCHE. CONSTRÓI E ELE ENCHE...”. SEGUNDO O SOCIÓLOGO “HÁ UM VOLUME EXCESSIVO DE PESSOAS CUMPRINDO PENAS POR TRÁFICO OU ATIVIDADES LIGADAS AOS MERCADOS ILEGAIS, COMO FORMAÇÃO DE QUADRILHA E ROUBOS, E ISSO É UM FATOR IMPORTANTÍSSIMO PARA EXPLICAR ESSA TRAGÉDIA QUE VIVE O BRASIL”.
O PADRE VALDIR JOÃO SILVEIRA, COORDENADOR NACIONAL DA PASTORAL CARCERÁRIA, CONCORDA COM MISSE. “QUANTO MAIS PRESÍDIOS VOCÊ CONSTRÓI, MAIS AUMENTA A VIOLÊNCIA. HÁ UMA PROPAGANDA ENGANOSA DE QUE EXISTE UM DÉFICIT DE VAGAS NAS CADEIAS, E QUE ESSE É O PROBLEMA. NA VERDADE SÃO OS PRESÍDIOS, QUASE TODOS COMANDADOS POR FACÇÕES CRIMINOSAS QUE TAMBÉM ATUAM NAS PERIFERIAS, QUE ALIMENTAM O CICLO DE VIOLÊNCIA”, DIZ.
OU SEJA, BASTA QUE SE CONSTRUA UM PRESÍDIO PARA QUE EM ALGUNS MESES ELE ESTEJA SUPERLOTADO. UM EXEMPLO CLARO DISSO OCORRE NO ESTADO DE SÃO PAULO. NOS ÚLTIMOS QUATRO ANOS FORAM CONSTRUÍDAS 42 UNIDADES, PRATICAMENTE TODAS JÁ ESTÃO OPERANDO MUITO ACIMA DA CAPACIDADE. DOS CINCO PRESÍDIOS E CENTROS DE DETENÇÃO PROVISÓRIA (CDPS, PARA PRESOS AINDA NÃO CONDENADOS) INAUGURADOS EM 2017 NO ESTADO, QUATRO JÁ ESTÃO SUPERLOTADAS. A MAIS NOVA É A PENITENCIÁRIA DE FRANCA, INAUGURADA EM PRIMEIRO DE OUTUBRO DO ANO PASSADO. COM CAPACIDADE PARA 847 PRESOS, JÁ CONTA COM 1.801 INTERNOS, MAIS DO QUE O DOBRO DA LOTAÇÃO PREVISTA. E O RITMO DAS OBRAS NÃO PARA: OUTRAS 15 UNIDADES ESTÃO ATUALMENTE EM CONSTRUÇÃO, AINDA SEM DATA PARA COMEÇAR A OPERAR.
MAS PARA ALÉM DAS GRADES, O AUMENTO DE PRESOS TEVE UM IMPACTO DEVASTADOR NAS COMUNIDADES MAIS POBRES DO PAÍS. “A PRISÃO EMPOBRECE AS FAMÍLIAS ATINGIDAS POR ELA, QUE PRECISAM PROVER PARA O PARENTE PRESO. ALÉM DISSO, PARA MANTER O VÍNCULO ELAS PRECISAM VIAJAR GRANDES DISTÂNCIAS [ATÉ OS PRESÍDIOS DO INTERIOR], O QUE NÃO É BARATO. PARA CADA PRESO EXISTEM VÁRIAS OUTRAS PESSOAS QUE SÃO AFETADAS”, AFIRMA O CIENTISTA SOCIAL RAFAEL GODOI, AUTOR DO LIVRO FLUXOS EM CADEIA: AS PRISÕES EM SÃO PAULO NA VIRADA DOS TEMPOS (EDITORA BOITEMPO).
O FORTALECIMENTO DAS FACÇÕES CRIMINOSAS NO BRASIL ANDOU DE MÃOS DADAS COM O AUMENTO VERTIGINOSO DO NÚMERO DE PRESOS NO PAÍS, NO PERÍODO DE 1990 ATÉ OS DIAS ATUAIS. SE 15 ANOS ATRÁS O PROBLEMA ERA CIRCUNSCRITO PRINCIPALMENTE AO RIO DE JANEIRO E SÃO PAULO, HOJE É CORRETO AFIRMAR QUE PRIMEIRO COMANDO DA CAPITALE COMANDO VERMELHO - AS DUAS MAIORES FACÇÕES BRASILEIRAS - ESTÃO PRESENTES EM QUASE TODOS OS ESTADOS. PARA O PROFESSOR MISSE O CÁRCERE ESTÁ LIGADO UMBILICALMENTE ÀS FACÇÕES. “O PROCESSO DO CRIME ORGANIZADO AQUI SE DÁ SEMPRE A PARTIR DO SISTEMA PENITENCIÁRIO. ENQUANTO EM OUTROS PAÍSES AS ORGANIZAÇÕES LIGADAS A MERCADOS ILEGAIS SE ORGANIZAM FORA DO SISTEMA, NAS RUAS, AQUI SÃO OS PRESÍDIOS QUE POTENCIALIZAM ESTAS REDES DE CONTATOS E PERMITEM A ATUAÇÃO NESTES MERCADOS ILEGAIS”, AFIRMA.
O BRASIL TEM A TERCEIRA MAIOR POPULAÇÃO CARCERÁRIA DO MUNDO, COM CERCA DE 726.712 PESSOAS TRANCADAS, ATRÁS APENAS DOS ESTADOS UNIDOS E DA CHINA. NOS ÚLTIMOS DEZ ANOS, ESTE NÚMERO MAIS DO QUE DOBROU. E, NO ENTANTO, DIFICILMENTE ALGUÉM DIRÁ QUE SE SENTE MAIS SEGURO. ALÉM DISSO OS INDICADORES CRIMINAIS TAMBÉM NÃO APRESENTARAM MELHORAS NO PAÍS. PELO CONTRÁRIO, APESAR DE TERMOS UMA ENORME QUANTIDADE DE PESSOAS PRESAS, AS TAXAS DE HOMICÍDIO AINDA CRESCEM. “NÓS PRENDEMOS MUITO E PRENDEMOS MAU. NÓS NÃO PRENDEMOS OS PRINCIPAIS FORNECEDORES, OS ATACADISTAS, PRENDEMOS OS VAREJISTAS E OLHE LÁ. EM GERAL NÓS PRENDEMOS A PONTA DO VAREJO. VOCÊ NÃO TEM EFICÁCIA NENHUMA COM RELAÇÃO A ESTE COMBATE”, DIZ MISSE. PARA O SOCIÓLOGO, TENTAR CONTROLAR COMPLETAMENTE A ENTRADA DESTAS SUBSTÂNCIAS NO PAÍS SERIA COMO “ENXUGAR GELO”: “NÃO HÁ TRABALHO DE INTELIGÊNCIA SISTEMÁTICO QUE SEJA CAPAZ DE IDENTIFICAR A CHEGADA DE DROGAS E ARMAS POR TODAS AS FRONTEIRAS BRASILEIRAS, SEJAM SECAS, AÉREAS OU MARÍTIMAS”.
A SOCIÓLOGA CAMILA DIAS, QUE PESQUISOU A FUNDO AS DINÂMICAS DO PCC, AFIRMA QUE “O PROBLEMA DAS FACÇÕES FOI SENDO FORJADO PELAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE TODOS OS ESTADOS DO BRASIL”. DE ACORDO COM ELA, FOI FEITA UMA APOSTA NO ENCARCERAMENTO COMO FORMA DE RESOLVER O PROBLEMA DA SEGURANÇA. “A PARTIR DOS ANOS 2000 ISSO PASSOU A SER UMA PRIORIDADE DOS ESTADOS”, DIZ. A CADA NOVO PRESÍDIO, ABRIA-SE O CAMPO PARA A INFLUÊNCIA DO CRIME ORGANIZADO. “AO CONSTRUIR NOVAS UNIDADES VOCÊ AMPLIA AS REDES PELAS QUAIS OS GRUPOS SE ARTICULAM”, DIZ. PARA ELA
A CADA NOVO PRESÍDIO, ABRIA-SE O CAMPO PARA A INFLUÊNCIA DO CRIME ORGANIZADO
OUTRO PECULIARIDADE DO NOSSO SISTEMA CARCERÁRIO É A GRANDE QUANTIDADE DE PRESOS PROVISÓRIOS, OU SEJA, QUE AINDA NÃO FORAM CONDENADOS. ELES REPRESENTAM 49% DA POPULAÇÃO TOTAL ATRÁS DAS GRADES. DE ACORDO COM O CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 29% DESTES PRESOS PROVISÓRIOS SÃO ACUSADOS DE TRÁFICO DE DROGAS. O CONSELHO REALIZA MUTIRÕES ANUAIS PARA AVALIAR A SITUAÇÃO DESTES DETIDOS: EM 2017 UMA AÇÃO BATIZADA DE “CHOQUE DE JUSTIÇA” ABSOLVEU MAIS DE 4.500 PRESOS PROVISÓRIOS E REVOGOU A PRISÃO DE OUTROS 21.700, QUE PODERÃO AGUARDAR O JULGAMENTO EM CASA.
“PRESÍDIOS SÃO LOCAIS QUE DEVERIAM SER RESERVADOS A CRIMINOSOS MUITO PERIGOSOS, QUE FELIZMENTE SÃO UMA MINORIA NO PAÍS”, DEFENDE MISSE. O QUE OCORRE AQUI, NO ENTANTO, É QUE “O SISTEMA PENITENCIÁRIO ESTÁ SENDO UTILIZADO PARA PRENDER QUALQUER PESSOA QUE PARTICIPE DE MERCADOS ILEGAIS: AÍ NÃO ACABA NUNCA. VOCÊ CONSTRÓI PRESÍDIO E ELE ENCHE. CONSTRÓI E ELE ENCHE...”. SEGUNDO O SOCIÓLOGO “HÁ UM VOLUME EXCESSIVO DE PESSOAS CUMPRINDO PENAS POR TRÁFICO OU ATIVIDADES LIGADAS AOS MERCADOS ILEGAIS, COMO FORMAÇÃO DE QUADRILHA E ROUBOS, E ISSO É UM FATOR IMPORTANTÍSSIMO PARA EXPLICAR ESSA TRAGÉDIA QUE VIVE O BRASIL”.
O PADRE VALDIR JOÃO SILVEIRA, COORDENADOR NACIONAL DA PASTORAL CARCERÁRIA, CONCORDA COM MISSE. “QUANTO MAIS PRESÍDIOS VOCÊ CONSTRÓI, MAIS AUMENTA A VIOLÊNCIA. HÁ UMA PROPAGANDA ENGANOSA DE QUE EXISTE UM DÉFICIT DE VAGAS NAS CADEIAS, E QUE ESSE É O PROBLEMA. NA VERDADE SÃO OS PRESÍDIOS, QUASE TODOS COMANDADOS POR FACÇÕES CRIMINOSAS QUE TAMBÉM ATUAM NAS PERIFERIAS, QUE ALIMENTAM O CICLO DE VIOLÊNCIA”, DIZ.
OU SEJA, BASTA QUE SE CONSTRUA UM PRESÍDIO PARA QUE EM ALGUNS MESES ELE ESTEJA SUPERLOTADO. UM EXEMPLO CLARO DISSO OCORRE NO ESTADO DE SÃO PAULO. NOS ÚLTIMOS QUATRO ANOS FORAM CONSTRUÍDAS 42 UNIDADES, PRATICAMENTE TODAS JÁ ESTÃO OPERANDO MUITO ACIMA DA CAPACIDADE. DOS CINCO PRESÍDIOS E CENTROS DE DETENÇÃO PROVISÓRIA (CDPS, PARA PRESOS AINDA NÃO CONDENADOS) INAUGURADOS EM 2017 NO ESTADO, QUATRO JÁ ESTÃO SUPERLOTADAS. A MAIS NOVA É A PENITENCIÁRIA DE FRANCA, INAUGURADA EM PRIMEIRO DE OUTUBRO DO ANO PASSADO. COM CAPACIDADE PARA 847 PRESOS, JÁ CONTA COM 1.801 INTERNOS, MAIS DO QUE O DOBRO DA LOTAÇÃO PREVISTA. E O RITMO DAS OBRAS NÃO PARA: OUTRAS 15 UNIDADES ESTÃO ATUALMENTE EM CONSTRUÇÃO, AINDA SEM DATA PARA COMEÇAR A OPERAR.
MAS PARA ALÉM DAS GRADES, O AUMENTO DE PRESOS TEVE UM IMPACTO DEVASTADOR NAS COMUNIDADES MAIS POBRES DO PAÍS. “A PRISÃO EMPOBRECE AS FAMÍLIAS ATINGIDAS POR ELA, QUE PRECISAM PROVER PARA O PARENTE PRESO. ALÉM DISSO, PARA MANTER O VÍNCULO ELAS PRECISAM VIAJAR GRANDES DISTÂNCIAS [ATÉ OS PRESÍDIOS DO INTERIOR], O QUE NÃO É BARATO. PARA CADA PRESO EXISTEM VÁRIAS OUTRAS PESSOAS QUE SÃO AFETADAS”, AFIRMA O CIENTISTA SOCIAL RAFAEL GODOI, AUTOR DO LIVRO FLUXOS EM CADEIA: AS PRISÕES EM SÃO PAULO NA VIRADA DOS TEMPOS (EDITORA BOITEMPO).
A VIOLÊNCIA CONTRA OS PRESOS QUE SE REFLETE NO LADO DE FORA
O PRIMEIRO COMANDO DA CAPITAL FOI FUNDADO EM 1993 NO ANEXO DA CASA DE CUSTÓDIA DE TAUBATÉ (CONHECIDA COMO PIRANHÃO). O APELIDO DA UNIDADE, CONSIDERADA ENTÃO UMA DAS MAIS SEGURAS DO ESTADO, TEM RELAÇÃO COM OS MAUS TRATOS SOFRIDOS PELOS DETENTOS NAS MÃOS DE GUARDAS E OUTROS PRESOS. EM SEU PRIMEIRO ESTATUTO A ORGANIZAÇÃO EXPLICAVA A IMPORTÂNCIA DA UNIÃO ENTRE OS PRESOS: “TEMOS QUE PERMANECER UNIDOS E ORGANIZADOS PARA EVITARMOS QUE OCORRA NOVAMENTE UM MASSACRE SEMELHANTE OU PIOR AO OCORRIDO NA CASA DE DETENÇÃO EM 2 DE OUTUBRO DE 1992, ONDE 111 PRESOS FORAM COVARDEMENTE ASSASSINADOS, MASSACRE ESTE QUE JAMAIS SERÁ ESQUECIDO NA CONSCIÊNCIA DA SOCIEDADE BRASILEIRA. PORQUE NÓS DO COMANDO [PCC] VAMOS MUDAR A PRÁTICA CARCERÁRIA, DESUMANA, CHEIA DE INJUSTIÇAS, OPRESSÃO, TORTURAS, MASSACRES NAS PRISÕES”. O PAPEL DO MASSACRE DO CARANDIRU NA CRIAÇÃO DA MAIOR FACÇÃO CRIMINOSA DO PAÍS É HOJE CONSENSO ENTRE ESTUDIOSOS DO TEMA.
“O PCC SURGE NUM CONTEXTO DE MUITA VIOLÊNCIA DENTRO DO CÁRCERE, E SE EXPANDE NESSE CONTEXTO DE ENCARCERAMENTO EM MASSA”, AFIRMA A PESQUISADORA CAMILA DIAS. “QUANDO SE AUMENTA A SUPERLOTAÇÃO DAS UNIDADES AUMENTAM AS PRESSÕES DENTRO DO SISTEMA, PRESSÃO POR SEGURANÇA, PROTEÇÃO E FORMAS DE SOBREVIVER LÁ DENTRO DE FORMA MENOS VULNERÁVEL”, DIZ.
O COMANDO VERMELHO, CRIADO NO FINAL DOS ANOS DE 1970 NO PRESÍDIO DA ILHA GRANDE (CONHECIDA COMO ILHA DO DIABO), TAMBÉM FOI UMA RESPOSTA DOS DETENTOS ÀS CONDIÇÕES DE VIOLÊNCIA E PRECARIEDADE DENTRO DO CÁRCERE.
FONTE:HTTPS://BRASIL.ELPAIS.COM/BRASIL/2018/01/31/POLITICA/1517410163_964093.HTML
O PRIMEIRO COMANDO DA CAPITAL FOI FUNDADO EM 1993 NO ANEXO DA CASA DE CUSTÓDIA DE TAUBATÉ (CONHECIDA COMO PIRANHÃO). O APELIDO DA UNIDADE, CONSIDERADA ENTÃO UMA DAS MAIS SEGURAS DO ESTADO, TEM RELAÇÃO COM OS MAUS TRATOS SOFRIDOS PELOS DETENTOS NAS MÃOS DE GUARDAS E OUTROS PRESOS. EM SEU PRIMEIRO ESTATUTO A ORGANIZAÇÃO EXPLICAVA A IMPORTÂNCIA DA UNIÃO ENTRE OS PRESOS: “TEMOS QUE PERMANECER UNIDOS E ORGANIZADOS PARA EVITARMOS QUE OCORRA NOVAMENTE UM MASSACRE SEMELHANTE OU PIOR AO OCORRIDO NA CASA DE DETENÇÃO EM 2 DE OUTUBRO DE 1992, ONDE 111 PRESOS FORAM COVARDEMENTE ASSASSINADOS, MASSACRE ESTE QUE JAMAIS SERÁ ESQUECIDO NA CONSCIÊNCIA DA SOCIEDADE BRASILEIRA. PORQUE NÓS DO COMANDO [PCC] VAMOS MUDAR A PRÁTICA CARCERÁRIA, DESUMANA, CHEIA DE INJUSTIÇAS, OPRESSÃO, TORTURAS, MASSACRES NAS PRISÕES”. O PAPEL DO MASSACRE DO CARANDIRU NA CRIAÇÃO DA MAIOR FACÇÃO CRIMINOSA DO PAÍS É HOJE CONSENSO ENTRE ESTUDIOSOS DO TEMA.
“O PCC SURGE NUM CONTEXTO DE MUITA VIOLÊNCIA DENTRO DO CÁRCERE, E SE EXPANDE NESSE CONTEXTO DE ENCARCERAMENTO EM MASSA”, AFIRMA A PESQUISADORA CAMILA DIAS. “QUANDO SE AUMENTA A SUPERLOTAÇÃO DAS UNIDADES AUMENTAM AS PRESSÕES DENTRO DO SISTEMA, PRESSÃO POR SEGURANÇA, PROTEÇÃO E FORMAS DE SOBREVIVER LÁ DENTRO DE FORMA MENOS VULNERÁVEL”, DIZ.
O COMANDO VERMELHO, CRIADO NO FINAL DOS ANOS DE 1970 NO PRESÍDIO DA ILHA GRANDE (CONHECIDA COMO ILHA DO DIABO), TAMBÉM FOI UMA RESPOSTA DOS DETENTOS ÀS CONDIÇÕES DE VIOLÊNCIA E PRECARIEDADE DENTRO DO CÁRCERE.
FONTE:HTTPS://BRASIL.ELPAIS.COM/BRASIL/2018/01/31/POLITICA/1517410163_964093.HTML
PCC, o “talibã” dos presídios cearenses
Facções impõe domínio rígido sobre sistema prisional cearense e ordenam atentados de dentro das cadeias
O chamado feito pelo crime mergulhou o Ceará em uma espiral de violência, com dezenas de atentados realizados em ao menos cinco ci
dades. Os alvos foram prefeituras, assembleias legislativas, delegacias e viaturas da polícia. Dentro das cadeias, o salve desencadeou a maior revolta simultânea da história do Estado: no total, sete presídios viraram ao mesmo tempo no Ceará. Ao menos 18 presos e dois policiais foram mortos até o final de julho, quando a situação começou a se acalmar. A ação tinha a marca do PCC: em 2006 a facção paralisou a cidade de São Paulo com uma série de ataques semelhantes e revoltas em dezenas de penitenciárias.
Nas periferias de Fortaleza, integrantes do PCC e do CV, que são aliados no Estado, afirmaram ao EL PAÍS que "apenas estupradores foram mortos" nos presídios. Pego de surpresa, o Governo tentou como pôde debelar a crise. No auge do caos, o delegado geral do Ceará, Raimundo Andrade Júnior, afirmou: "Observa-se que facções que historicamente são inimigas, aqui no Ceará resolvem se irmanar", uma menção velada à atuação conjunta do CV, PCC e dos grupos locais.
O ex-detento Carlos Almeida, que cumpriu pena de “um ano, seis meses e 26 dias”, descreve assim a chegada do PCC aos presídios cearenses: “Virou como se fosse o talibã[grupo radical islâmico afegão conhecido por suas práticas restritivas], não podia nada”. De acordo com ele, qualquer desvio das normas impostas pela facção “era paga com facada ou morte”. “Se sumia alguma coisa em alguma cela, logo vinham eles dizendo ‘quem foi? Vamos descobrir!”, afirma.
Ângelo Vannucio de Araújo, 35, é outro ex-detento que presenciou a ascensão do PCC dentro das cadeias locais. Condenado a uma pena de “cinco anos e alguns meses” por homicídio, ele ficou preso em diversos presídios cearenses, inclusive na Casa de Privação Provisória de Liberdade de Itaitinga, uma das mais violentas do Estado. “Com a chegada do PCC começou o apadrinhamento dos presos”, afirma, referindo-se ao processo de batismo a partir do qual um detento passa a integrar ‘oficialmente’ a ‘família’, após ser batizado e prestar juramento ao código de conduta da organização. “Eu não quis entrar, porque quem entra não pode sair, e eu queria cumprir minha pena e poder viver em sociedade depois”, conta.
A disciplina imposta pelo PCC, por vezes, cobra seu preço com sangue. Araújo relembra um dos momentos que mais o marcou durante seus mais de cinco anos de reclusão. Das mais de 20 mortes que ele presenciou dentro do sistema penitenciário, uma ele não esquece. “Meu primo estava preso na mesma unidade que eu. Ele cobrava pedágio de outros presos, obrigava eles a dar um pouco da droga que vendiam”, afirma. Pelo código de conduta da facção paulista a extorsão de outros presos não é um comportamento bem aceito. “Aí um dia durante o banho de sol um outro preso transpassou ele no peito com um coçoco [barra de ferro afiada na ponta]. Foi com tanta força que ele não conseguiu nem tirar o ferro depois”, diz. O primo se esvaiu em sangue e morreu no pátio. “Eu não pude ajudar, não podia fazer nada. O errado é errado. Se fosse tentar socorrê-lo, eu morria junto”.
O chamado feito pelo crime mergulhou o Ceará em uma espiral de violência, com dezenas de atentados realizados em ao menos cinco ci
dades. Os alvos foram prefeituras, assembleias legislativas, delegacias e viaturas da polícia. Dentro das cadeias, o salve desencadeou a maior revolta simultânea da história do Estado: no total, sete presídios viraram ao mesmo tempo no Ceará. Ao menos 18 presos e dois policiais foram mortos até o final de julho, quando a situação começou a se acalmar. A ação tinha a marca do PCC: em 2006 a facção paralisou a cidade de São Paulo com uma série de ataques semelhantes e revoltas em dezenas de penitenciárias.
Nas periferias de Fortaleza, integrantes do PCC e do CV, que são aliados no Estado, afirmaram ao EL PAÍS que "apenas estupradores foram mortos" nos presídios. Pego de surpresa, o Governo tentou como pôde debelar a crise. No auge do caos, o delegado geral do Ceará, Raimundo Andrade Júnior, afirmou: "Observa-se que facções que historicamente são inimigas, aqui no Ceará resolvem se irmanar", uma menção velada à atuação conjunta do CV, PCC e dos grupos locais.
O ex-detento Carlos Almeida, que cumpriu pena de “um ano, seis meses e 26 dias”, descreve assim a chegada do PCC aos presídios cearenses: “Virou como se fosse o talibã[grupo radical islâmico afegão conhecido por suas práticas restritivas], não podia nada”. De acordo com ele, qualquer desvio das normas impostas pela facção “era paga com facada ou morte”. “Se sumia alguma coisa em alguma cela, logo vinham eles dizendo ‘quem foi? Vamos descobrir!”, afirma.
Ângelo Vannucio de Araújo, 35, é outro ex-detento que presenciou a ascensão do PCC dentro das cadeias locais. Condenado a uma pena de “cinco anos e alguns meses” por homicídio, ele ficou preso em diversos presídios cearenses, inclusive na Casa de Privação Provisória de Liberdade de Itaitinga, uma das mais violentas do Estado. “Com a chegada do PCC começou o apadrinhamento dos presos”, afirma, referindo-se ao processo de batismo a partir do qual um detento passa a integrar ‘oficialmente’ a ‘família’, após ser batizado e prestar juramento ao código de conduta da organização. “Eu não quis entrar, porque quem entra não pode sair, e eu queria cumprir minha pena e poder viver em sociedade depois”, conta.
A disciplina imposta pelo PCC, por vezes, cobra seu preço com sangue. Araújo relembra um dos momentos que mais o marcou durante seus mais de cinco anos de reclusão. Das mais de 20 mortes que ele presenciou dentro do sistema penitenciário, uma ele não esquece. “Meu primo estava preso na mesma unidade que eu. Ele cobrava pedágio de outros presos, obrigava eles a dar um pouco da droga que vendiam”, afirma. Pelo código de conduta da facção paulista a extorsão de outros presos não é um comportamento bem aceito. “Aí um dia durante o banho de sol um outro preso transpassou ele no peito com um coçoco [barra de ferro afiada na ponta]. Foi com tanta força que ele não conseguiu nem tirar o ferro depois”, diz. O primo se esvaiu em sangue e morreu no pátio. “Eu não pude ajudar, não podia fazer nada. O errado é errado. Se fosse tentar socorrê-lo, eu morria junto”.
Rebeliões coordenadas
“As rebeliões de maio foram atípicas, nunca houve rebeliões articuladas no Ceará: era uma aqui, outra ali, o que ocorreu em maio foi inédito”, conta o padre Marcos Passerini, 75, coordenador da Pastoral Carcerária no Estado. De acordo com o religioso, o estopim para essa revolta foi a greve dos agentes penitenciários. A consequência desta paralisação foi a suspensão das visitas dos familiares dos presos, o que jogou mais gasolina em uma situação já inflamada pela superlotação e por condições precárias de infraestrutura e salubridade. “As famílias levam alimentos, papel higiênico, e tudo aquilo que o Estado não consegue fornecer”, diz Passerini. "Mas essa greve foi apenas a gota d'água, as reais causas são superlotação, abusos e todo tipo de violação de direitos que ocorrem nas unidades".
"Você entra em um corredor e vê pichações do CV e do PCC em uma mesma ala, convivendo"
O religioso afirma que o fato dos detentos cearenses não serem separados em presídios diferentes de acordo com sua facção, como ocorre no Rio de Janeiro, por exemplo, "facilita que elas se irmanem, acaba sendo uma escola". "Você entra em um corredor e vê pichações do CV e do PCC em uma mesma ala, convivendo", diz. Debeladas as revoltas no sistema penitenciário, as autoridades anunciaram a apreensão de mais de 400 telefones celulares nas celas.
Talvez o maior sinal da importância do Ceará para o PCC tenha sido a prisão, no final de março deste ano, de Alejandro Herbas Camacho Junior em Fortaleza. Ele é irmão mais novo de Marcos Wilians Herbas Camacho, conhecido como Marcola, a maior liderança do grupo criminoso. A Polícia Federal acredita que Junior era encarregado de cuidar dos negócios da facção no Nordeste, e coordenava uma rede de empresas de fachada utilizadas para lavagem de dinheiro oriundo de roubos a banco e do tráfico de drogas. O Ceará tem um papel importante na rota de tráfico mundial, uma vez que parte da droga proveniente da Colômbia e do Peru passa pelo Estado antes de ser enviada para a Europa.
Fonte:https://brasil.elpais.com/brasil/2016/08/19/politica/1471620877_245351.html?rel=mas
“As rebeliões de maio foram atípicas, nunca houve rebeliões articuladas no Ceará: era uma aqui, outra ali, o que ocorreu em maio foi inédito”, conta o padre Marcos Passerini, 75, coordenador da Pastoral Carcerária no Estado. De acordo com o religioso, o estopim para essa revolta foi a greve dos agentes penitenciários. A consequência desta paralisação foi a suspensão das visitas dos familiares dos presos, o que jogou mais gasolina em uma situação já inflamada pela superlotação e por condições precárias de infraestrutura e salubridade. “As famílias levam alimentos, papel higiênico, e tudo aquilo que o Estado não consegue fornecer”, diz Passerini. "Mas essa greve foi apenas a gota d'água, as reais causas são superlotação, abusos e todo tipo de violação de direitos que ocorrem nas unidades".
"Você entra em um corredor e vê pichações do CV e do PCC em uma mesma ala, convivendo"
O religioso afirma que o fato dos detentos cearenses não serem separados em presídios diferentes de acordo com sua facção, como ocorre no Rio de Janeiro, por exemplo, "facilita que elas se irmanem, acaba sendo uma escola". "Você entra em um corredor e vê pichações do CV e do PCC em uma mesma ala, convivendo", diz. Debeladas as revoltas no sistema penitenciário, as autoridades anunciaram a apreensão de mais de 400 telefones celulares nas celas.
Talvez o maior sinal da importância do Ceará para o PCC tenha sido a prisão, no final de março deste ano, de Alejandro Herbas Camacho Junior em Fortaleza. Ele é irmão mais novo de Marcos Wilians Herbas Camacho, conhecido como Marcola, a maior liderança do grupo criminoso. A Polícia Federal acredita que Junior era encarregado de cuidar dos negócios da facção no Nordeste, e coordenava uma rede de empresas de fachada utilizadas para lavagem de dinheiro oriundo de roubos a banco e do tráfico de drogas. O Ceará tem um papel importante na rota de tráfico mundial, uma vez que parte da droga proveniente da Colômbia e do Peru passa pelo Estado antes de ser enviada para a Europa.
Fonte:https://brasil.elpais.com/brasil/2016/08/19/politica/1471620877_245351.html?rel=mas
O Comando Vermelho, do presídio em uma ilha paradisíaca à guerra sangrenta por território
Com suas lideranças na prisão, a facção do Rio nutre-se de jovens e é considerada por policiais a mais sanguinária dentre os inimigos
O Comando Vermelho, a segunda facção criminosa do Brasil e a mais poderosa do Rio de Janeiro,nasceu em um paraíso natural que já foi considerado um inferno na terra. Ilha Grande, um belo destino turístico na costa do Rio, abrigou desde 1886, na época do imperador Pedro II, até 1993, uma das prisões mais horríveis do mundo: os piores criminosos do Rio, vestidos como mendigos, brigavam ali por um prato de comida ou um chuveiro.
Os prisioneiros eram, primeiro, doentes de cólera e febre tifoide chegados da Europa e da África, até que a prisão se transformou em calabouço de prisioneiros políticos ilustres, opositores da ditadura (1964-1986), guerrilheiros, criminosos comuns, assassinos e estupradores do Rio.
Foi nessa convivência opressiva e desumana que, em junho de 1979, germinou a semente do Comando sob o lema “Paz, Justiça e Liberdade”. A união parece óbvia em uma prisão na qual, como nas de hoje, os ladrões de carteira estão misturados com assassinos em série. Os criminosos comuns que seriam os fundadores de uma das facções mais perigosas do Brasil compartilhavam espaço com presos enquadrados na Lei de Segurança Nacional da ditadura que, para neutralizar os adversários, incluía de conspiradores a ladrões de banco e sequestradores.
Os pais do Comando Vermelho logo se interessaram pelos valores, livros e métodos mais sofisticados dos colegas de cela, mas principalmente encontraram na união a fórmula para sobreviver em um ambiente onde outros grupos de presos espalhavam o terror com estupros, torturas e assassinatos. A primeira regra era “respeito ao companheiro” e seu primeiro nome conhecido foi Falange Vermelha. “Foi a polícia que nos chamava de Falange, mas era direita demais. Lembrava a Espanha de Franco, do fascismo”, contou publicamente um de seus fundadores, William da Silva Lima, apelidado de O Professor.
O Comando logo se profissionalizou no assalto a bancos e sequestros de empresários e personalidades, especialidade de seus mentores, mas a atividade foi diminuindo ao longo dos anos por sua alta periculosidade. Hoje focado no narcotráfico e no roubo de cargas, o grupo se transformou em um refúgio para muitos jovens das abandonadas favelas cariocas. O crime oferece uma maneira de sustentar sua família e ascender socialmente na comunidade. Muitos dos chefes dos pontos de venda de drogas que são, no final, aqueles que impõem a ordem nas favelas, têm cerca de 20 anos. Também é comum ver jovens ainda menores imitando a sigla da facção com as mãos ao tirar uma foto. Seus patrões, mais velhos e experientes, estão mortos ou dando ordens da prisão, como sempre foi feito.
Em 1990, 90% das favelas do Rio de Janeiro pertenciam ao Comando Vermelho, de acordo com o livro Comando Vermelho: A história secreta do crime organizado, de Carlos Amorim. O livro conta que nos anos 80 os traficantes começaram a financiar escolas de samba e campanhas políticas. A hegemonia deles, no entanto, está ameaçada quase desde sua criação pela guerra territorial que trava com duas facções inimigas, resultado da dissidência e traição de seus próprios membros, o Terceiro Comando Puro (TCP) e Amigos dos Amigos (ADA). A polícia é o quarto agente nessa guerra não oficial.
Os traficantes do Comando Vermelho, um número desconhecido de soldados distribuídos em uma dezena de estados brasileiros, desfrutam de um enorme contingente bélico, incluindo fuzis e granadas, que lhes dá o poder para repelir aos tiros cada operação policial que os persegue. “Os outros [ADA e TCP] também atiram em você, mas nada se compara ao CV. Já participei de tiroteios de oito horas contra eles. Oito horas!”, conta um delegado. Seus membros, além disso, são descritos pelos agentes como os mais sanguinários. “O Comando Vermelho adora queimar um policial vivo, enquanto que seus inimigos preferem suborná-los”, diz outro policial, sempre de forma anônima.
Como em outras facções criminosas, há regras internas inquebráveis e existe um tribunal do crime no qual os chefes, a maioria na cadeia, decide o que fazer com os transgressores. Ser informante da polícia ou mudar de facção é punido com a morte, roubar na favela pode custar uma mão, e, em teoria, não são permitidos estupros que não sejam feitos por eles mesmos. Há outros pecados como flertar com os inimigos. Numa investigação recente da Polícia Civil do Rio, as escutas telefônicas revelaram o castigo que iria sofrer a esposa de um membro do Primeiro Comando da Capital, a maior facção do Brasil e hoje inimiga do CV, por ter flertado com um de seus “irmãos”, que também seria punido. “Ela vai levar uma surra e vão raspar a cabeça dela”, informou um preso ao seu superior. Em sua faceta mais humana, os traficantes também pagam despesas médicas de seus vizinhos, compram alimentos básicos ou organizam festas de Natal.
Alguns dos líderes mais famosos que integram ou integraram a cúpula CV são os traficantes Fernandinho Beira-Mar, condenado a mais de 400 anos de prisão; Elias Maluco, apontado como responsável pelo assassinato e tortura do jornalista Tim Lopes em 2002, e Marcinho VP, admirador do movimento zapatista no México que costumava dizer, antes de morrer na prisão em 2003, que não era um traficante “mas um revolucionário”.
Apesar de conhecer sua existência desde 1981, a Polícia Civil do Rio só investigou as raízes do Comando em 1991, conta Amorim em seu livro. Era comum minimizar o inimigo, como quando o então governador e hoje ministro Wellington Moreira Franco (PMDB) escondeu que havia sofrido dois ataques da facção no final da década de 80. “Poderia ter ido à televisão e faturado politicamente. Eu me colocaria como vítima do crime organizado. Mas pensei melhor. Admitir isso era absurdo. Significava dizer que o poder público, na figura do próprio governador, estava vulnerável a uma ação armada”, contou Moreira Franco no livro de Amorim.
Uma das apostas no combate ao tráfico de drogas teve seu laboratório no Rio de Janeiro. A implementação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), principalmente em áreas dominadas pelo Comando Vermelho, com o objetivo de expulsar os traficantes, chegou a ser vista como a fórmula mágica para desidratar a facção. “Sem o seu maior território, com menos armas, drogas e dinheiro, o CV é quase um bando comum”, disse um oficial da Polícia Militar ao portal de notícias Terra após a retomada do enorme complexo de favelas do Alemão, em 2010. Não foi assim. Moreira Franco já avisava na década de 90. “O crime não é mais o mesmo. Quem acredita que são apenas um bando de ignorantes, um punhado de analfabetos, está completamente enganado”.
Fonte:https://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/05/politica/1483644143_976068.html?rel=mas
Abaixo Márcio Ramalho Diogo, vulgo Garrote, de boné vermelho.
O Comando Vermelho, a segunda facção criminosa do Brasil e a mais poderosa do Rio de Janeiro,nasceu em um paraíso natural que já foi considerado um inferno na terra. Ilha Grande, um belo destino turístico na costa do Rio, abrigou desde 1886, na época do imperador Pedro II, até 1993, uma das prisões mais horríveis do mundo: os piores criminosos do Rio, vestidos como mendigos, brigavam ali por um prato de comida ou um chuveiro.
Os prisioneiros eram, primeiro, doentes de cólera e febre tifoide chegados da Europa e da África, até que a prisão se transformou em calabouço de prisioneiros políticos ilustres, opositores da ditadura (1964-1986), guerrilheiros, criminosos comuns, assassinos e estupradores do Rio.
Foi nessa convivência opressiva e desumana que, em junho de 1979, germinou a semente do Comando sob o lema “Paz, Justiça e Liberdade”. A união parece óbvia em uma prisão na qual, como nas de hoje, os ladrões de carteira estão misturados com assassinos em série. Os criminosos comuns que seriam os fundadores de uma das facções mais perigosas do Brasil compartilhavam espaço com presos enquadrados na Lei de Segurança Nacional da ditadura que, para neutralizar os adversários, incluía de conspiradores a ladrões de banco e sequestradores.
Os pais do Comando Vermelho logo se interessaram pelos valores, livros e métodos mais sofisticados dos colegas de cela, mas principalmente encontraram na união a fórmula para sobreviver em um ambiente onde outros grupos de presos espalhavam o terror com estupros, torturas e assassinatos. A primeira regra era “respeito ao companheiro” e seu primeiro nome conhecido foi Falange Vermelha. “Foi a polícia que nos chamava de Falange, mas era direita demais. Lembrava a Espanha de Franco, do fascismo”, contou publicamente um de seus fundadores, William da Silva Lima, apelidado de O Professor.
O Comando logo se profissionalizou no assalto a bancos e sequestros de empresários e personalidades, especialidade de seus mentores, mas a atividade foi diminuindo ao longo dos anos por sua alta periculosidade. Hoje focado no narcotráfico e no roubo de cargas, o grupo se transformou em um refúgio para muitos jovens das abandonadas favelas cariocas. O crime oferece uma maneira de sustentar sua família e ascender socialmente na comunidade. Muitos dos chefes dos pontos de venda de drogas que são, no final, aqueles que impõem a ordem nas favelas, têm cerca de 20 anos. Também é comum ver jovens ainda menores imitando a sigla da facção com as mãos ao tirar uma foto. Seus patrões, mais velhos e experientes, estão mortos ou dando ordens da prisão, como sempre foi feito.
Em 1990, 90% das favelas do Rio de Janeiro pertenciam ao Comando Vermelho, de acordo com o livro Comando Vermelho: A história secreta do crime organizado, de Carlos Amorim. O livro conta que nos anos 80 os traficantes começaram a financiar escolas de samba e campanhas políticas. A hegemonia deles, no entanto, está ameaçada quase desde sua criação pela guerra territorial que trava com duas facções inimigas, resultado da dissidência e traição de seus próprios membros, o Terceiro Comando Puro (TCP) e Amigos dos Amigos (ADA). A polícia é o quarto agente nessa guerra não oficial.
Os traficantes do Comando Vermelho, um número desconhecido de soldados distribuídos em uma dezena de estados brasileiros, desfrutam de um enorme contingente bélico, incluindo fuzis e granadas, que lhes dá o poder para repelir aos tiros cada operação policial que os persegue. “Os outros [ADA e TCP] também atiram em você, mas nada se compara ao CV. Já participei de tiroteios de oito horas contra eles. Oito horas!”, conta um delegado. Seus membros, além disso, são descritos pelos agentes como os mais sanguinários. “O Comando Vermelho adora queimar um policial vivo, enquanto que seus inimigos preferem suborná-los”, diz outro policial, sempre de forma anônima.
Como em outras facções criminosas, há regras internas inquebráveis e existe um tribunal do crime no qual os chefes, a maioria na cadeia, decide o que fazer com os transgressores. Ser informante da polícia ou mudar de facção é punido com a morte, roubar na favela pode custar uma mão, e, em teoria, não são permitidos estupros que não sejam feitos por eles mesmos. Há outros pecados como flertar com os inimigos. Numa investigação recente da Polícia Civil do Rio, as escutas telefônicas revelaram o castigo que iria sofrer a esposa de um membro do Primeiro Comando da Capital, a maior facção do Brasil e hoje inimiga do CV, por ter flertado com um de seus “irmãos”, que também seria punido. “Ela vai levar uma surra e vão raspar a cabeça dela”, informou um preso ao seu superior. Em sua faceta mais humana, os traficantes também pagam despesas médicas de seus vizinhos, compram alimentos básicos ou organizam festas de Natal.
Alguns dos líderes mais famosos que integram ou integraram a cúpula CV são os traficantes Fernandinho Beira-Mar, condenado a mais de 400 anos de prisão; Elias Maluco, apontado como responsável pelo assassinato e tortura do jornalista Tim Lopes em 2002, e Marcinho VP, admirador do movimento zapatista no México que costumava dizer, antes de morrer na prisão em 2003, que não era um traficante “mas um revolucionário”.
Apesar de conhecer sua existência desde 1981, a Polícia Civil do Rio só investigou as raízes do Comando em 1991, conta Amorim em seu livro. Era comum minimizar o inimigo, como quando o então governador e hoje ministro Wellington Moreira Franco (PMDB) escondeu que havia sofrido dois ataques da facção no final da década de 80. “Poderia ter ido à televisão e faturado politicamente. Eu me colocaria como vítima do crime organizado. Mas pensei melhor. Admitir isso era absurdo. Significava dizer que o poder público, na figura do próprio governador, estava vulnerável a uma ação armada”, contou Moreira Franco no livro de Amorim.
Uma das apostas no combate ao tráfico de drogas teve seu laboratório no Rio de Janeiro. A implementação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), principalmente em áreas dominadas pelo Comando Vermelho, com o objetivo de expulsar os traficantes, chegou a ser vista como a fórmula mágica para desidratar a facção. “Sem o seu maior território, com menos armas, drogas e dinheiro, o CV é quase um bando comum”, disse um oficial da Polícia Militar ao portal de notícias Terra após a retomada do enorme complexo de favelas do Alemão, em 2010. Não foi assim. Moreira Franco já avisava na década de 90. “O crime não é mais o mesmo. Quem acredita que são apenas um bando de ignorantes, um punhado de analfabetos, está completamente enganado”.
Fonte:https://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/05/politica/1483644143_976068.html?rel=mas
Abaixo Márcio Ramalho Diogo, vulgo Garrote, de boné vermelho.
Comentários
Postar um comentário