O COMBATE AO ABUSO E À EXPLORAÇÃO DE CRIANÇAS E AS FERIDAS INVISÍVEIS - SEM BASE DE DADOS,BRASIL REAGE MAL AOS CASOS DE ABUSO SEXUAL INFANTIL
O Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração de Crianças e Adolescentes é também de reflexão
O combate ao abuso e à exploração de crianças e as feridas invisíveis
por Carlos Bezerra Jr.* — publicado 18/05/2018 10h50, última modificação 18/05/2018 10h52
Há uma média assustadora de crianças exploradas sexualmente no Brasil: 513 vítimas a cada 24 horas
A formação de uma pessoa, a construção de seus valores, a associação entre os fatores psicológicos e relacionais se dão, sobretudo, no período da infância. E esta fase da vida humana está garantida (ou deveria estar) por um marco de direitos: o Estatuto da Criança e do Adolescente, que completará 28 anos em julho.
Em seu artigo 4º, o ECA diz que é “dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer” à criança e ao adolescente entre tantos outros direitos listados no texto.
Seguimos um pouco mais adiante na leitura do Estatuto e nos deparamos com o artigo 5º que diz que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”. E ao artigo 244-A que classifica como crime, com pena de reclusão, submeter a criança ou o adolescente à exploração sexual.
Estamos falando de uma lei que existe há quase três décadas. Um instrumento considerado avançado e vanguardista. Mas se o país avançou tanto em reconhecimento direitos, ainda é um atraso na garantia deles. E hoje, Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração de Crianças e Adolescentes,é um dia de luta, mas também de reflexão para pensarmos em maneiras eficazes de ação numa batalha que os números nos mostram em desvantagem.
Se somarmos somente quatros anos (de 2012 a 2016) de denúncias feitas (53.151) ao Disque 100, e considerarmos as estimativas do canal de denúncia, chegaremos a uma média assustadora de crianças exploradas sexualmente no Brasil: 513 vítimas a cada 24 horas. Segundo o Disque 100, apenas 7 em cada 100 casos são notificados. Isso significa dizer que neste período tivemos cerca de 750 mil crianças e adolescentes explorados sexualmente.
E não podemos perder de vista que antes de chegar à exploração, a criança já passou por outras etapas de violência, como a negligência, o abandono e o abuso (quando não há interesse em lucrar, e normalmente é cometido por alguém da família ou um conhecido).
Somente as rodovias e estradas federais de todo o Brasil tem 2.487 pontos considerados vulneráveis à exploração de crianças e adolescentes, segundo dados divulgados pela Polícia Rodoviária Federal na sétima edição do projeto Mapear 2017/2018, executado em parceria com a organização Childhood Brasil. O número mapeado por este levantamento é 20% maior que o registrado no biênio anterior.
Agora vem a pergunta: por que essa “conta” não fecha? Como podemos ser tão avançados em termos de garantia de direitos e ao mesmo tempo capazes de produzirmos números tão devastadores?
Grande parte dos casos de exploração está associada à estrutura familiar dizimada, à pobreza, à miséria que despertam o interesse de aliciadores, de agenciadores que veem na condição da desigualdade social profunda uma “oportunidade de fazer dinheiro” com a vida de um inocente e indefeso. Mas sabemos que a exploração sexual não tem uma única causa.
Os riscos somados estão ligados ao ambiente em que a criança se desenvolve, ao abuso sexual, à violência doméstica, física e psicológica, à drogadição, que atingem todas as classes sociais, e vários outros fatores ligados a questões sociais, culturais e ambientais que comprometem o desenvolvimento da criança e potencializam sua vulnerabilidade.
Mas fato é que se a exploração sexual existe, há quem lucre com isso, há quem “consuma”, há quem vire as costas, há também aqueles que prevaricam.
Se voltarmos ao artigo 4º do ECA veremos, primeiramente, que proteger e garantir os direitos da criança e do adolescente é dever de todos nós, ou seja, de cada um de nós.
Eu vi esse comprometimento vindo de uma só pessoa que fez muita coisa acontecer ao redor dela. Há pouco mais de um ano, quando estive em uma viagem de trabalho para conhecer iniciativas ligadas a entidades cristãs que atuam no combate à exploração sexual de crianças e adolescentes na Tailândiia (a cidade de Pattaya, por exemplo, vem tentando se desvencilhar da fama de capital do turismo sexual do mundo) conheci o projeto Home Of New Beginnings (“Lar de novos começos”, em tradução livre).
Foi uma das experiências mais avassaladoras que já vivi. Tanto no sentido de ver tão de perto a degradação humana provocada pela ganância e por sentimentos nefastos que movem as pessoas, quanto por assistir ao trabalho incansável de outras tantas comprometidas com esta luta e ver também de perto a transformação que ela é capaz de gerar quando bem-sucedida.
A fundadora da casa de acolhimento, a americana Bonita Thompson largou o próprio país depois que, em uma visita à Tailândia, viu a condição brutal de muitos jovens. Há 14 anos, ela criou o espaço que além de acolher, dá oportunidade de estudos a meninas que antes viviam na chamada Red Light District, ou “Distrito da luz vermelha”, região onde vivem cerca de dez mil mulheres de todas as idades que se prostituem.
Eu me lembro de perguntar a Bonita como ela encontrava forças para ir àquele lugar tão degradante, cheio de meninas que ainda estão na fase das “bonecas” e são vistas como mercadorias. E ela me contou que o que a encorajava era ver reconstruída a vida dessas jovens, transformadas as chances a partir de uma única oportunidade, que elas finalmente encontravam, de poder estudar, de sentir que tem gente que se preocupa com elas e lhes dá atenção.
E quantas crianças e adolescentes crescem sem nunca encontrar um rosto e uma voz como a de Bonita?
O poder público, até pela capilaridade de sua atuação, deve agir de maneira integrada desde a análise local (já se sabe que existe subnotificação dos casos e isso precisa ser considerado) até a mobilização, responsabilização, atendimento e acima de tudo, a prevenção deste crime.
Unir as forças de segurança, como as polícias (militares, rodoviária, federais) e as guardas municipais. Integrar e estruturar serviços do Judiciário, Ministérios Público e Polícia Civil. Ampliar a estrutura de atendimento das delegacias especializadas na proteção da criança e do adolescente. Trabalhar na inteligência para identificação dos grupos de aliciadores e agenciadores. Essas, seguramente, são medidas urgentes.
Em outra ponta, promover ações na área da educação, inclusive com capacitação profissional para que os casos como de abuso sexual, possam ser identificados com maior facilidade, fortalecer os canais de denúncia, inclusive municipalizando o Disque 100, buscar parceiros na sociedade civil para amplificar o poder da conscientização. São algumas lições de casa que costumam ser jogadas na gaveta. Na prática, vemos os casos, ainda que subnotificados, crescerem.
Tudo o que precisamos evitar é que caminhemos para uma humanidade anestesiada diante de tantas mazelas, que não atue e não cobre de quem deve atuar.
As grandes transformações no mundo só ocorreram porque vozes indignidades foram erguidas. Pense em quantas conquistas foram obtidas ao longo da história com lutas que começaram em pequeno número, cresceram e avançaram para grandes vitorias. Se não queremos fazer parte do que está errado, devemos lutar pelo que é certo. Acredito que as crianças só podem contar com isso. Nada mais.
*Carlos Bezerra Jr. é médico, deputado estadual e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo
Sem base de dados, Brasil reage mal aos casos de abuso sexual infantil
por Ana Luiza Basilio — publicado 11/03/2018 00h20, última modificação 09/03/2018 16h26
Para pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, a sub-notificação pode piorar no contexto do teto de gastos e corte nas políticas sociais
"Não é possível afirmar se os casos de pedofilia cresceram ou diminuíram nos últimos anos no Brasil", atesta especialista
O teto para os gastos públicos imposto para os próximos 20 anos, uma das medidas aprovadas pelo governo Temer, deve prejudicar ainda mais as políticas de proteção integral das crianças e adolescentes. A análise é do sociólogo e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, Herbert Rodrigues, autor do livro "A pedofilia e suas narrativas".
“O congelamento das despesas públicas e os cortes nos investimentos nas áreas sociais por 20 anos deve provocar um retrocesso nos avanços conquistados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e pelas convenções internacionais das quais o Brasil é signatário”, comenta o pesquisador que mostra preocupação, sobretudo, com o enfrentamento aos casos de abuso sexual infantil. "Com os cortes nos investimentos nas áreas sociais por 20 anos as principais vítimas serão as crianças", afirma.
“O congelamento das despesas públicas e os cortes nos investimentos nas áreas sociais por 20 anos deve provocar um retrocesso nos avanços conquistados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e pelas convenções internacionais das quais o Brasil é signatário”, comenta o pesquisador que mostra preocupação, sobretudo, com o enfrentamento aos casos de abuso sexual infantil. "Com os cortes nos investimentos nas áreas sociais por 20 anos as principais vítimas serão as crianças", afirma.
O contexto, já fragilizado, preocupa o especialista em pontos específicos, como a subnotificação dos casos. “Além de o Brasil ter uma alta incidência de casos - por ano, há uma média de 50 mil casos de estupros e 70% das vítimas são crianças e adolescentes -, o País sofre com a não notificação ou sub-notificação dos casos”, explica.
A situação ocorre pela falta de uma base unificada de dados, o que inviabiliza um diagnóstico preciso da situação atual das crianças e adolescentes e ações efetivas de prevenção aos casos de abuso sexual. Em entrevista a CartaCapital, o pesquisador fala sobre a falta de investimentos na área, os entraves para a criação de políticas protetivas específicas e a necessidade de priorizar o tema na agenda pública.
Carta Capital: Qual a situação do Brasil diante dos casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes?
Herbert Rodrigues: A cada ano, um número inestimado de crianças e adolescentes são abusados no Brasil. No entanto, ninguém é capaz de dizer, com precisão, quantos eles são.
Herbert Rodrigues: A cada ano, um número inestimado de crianças e adolescentes são abusados no Brasil. No entanto, ninguém é capaz de dizer, com precisão, quantos eles são.
A situação do Brasil é bastante crítica por dois motivos: em primeiro lugar, o número de casos é muito alto. Há, em média, 50 mil estupros registrados por ano. Um levantamento do Ipea, feito com dados do Sinan, aponta que cerca de 70% das vítimas são crianças e adolescentes.
Em segundo, muitos casos não são notificados, ou são subnotificados. Quando envolve crianças, a subnotificação é ainda maior. Normalmente, os dados sobre a vitimização não-fatal de crianças e jovens são inexistentes.
Como no Brasil não há uma base unificada de dados, é praticamente impossível ter uma noção abrangente dos casos de abuso sexual que possibilite um diagnóstico preciso da situação atual das crianças e adolescentes. Acredito que uma boa base de dados estatísticos poderia auxiliar o Estado e a sociedade na elaboração de políticas públicas voltadas ao abuso sexual infantil, sobretudo de prevenção.
CC: Por que o País não consegue unificar seus dados de casos de abuso sexual?
HR: Porque as estatísticas são feitas com base em dados coletados a partir do registro dos boletins de ocorrência policial, no Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan), nos fornecidos pela Secretaria de Direitos Humanos (SDH) da Presidência da República, via Disque 100; nos casos registrados pela justiça a partir dos julgamentos, nos divulgados pela mídia e, mais recentemente, no banco de dados criado pela 4ª Delegacia de Repressão à Pedofilia de São Paulo.
HR: Porque as estatísticas são feitas com base em dados coletados a partir do registro dos boletins de ocorrência policial, no Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan), nos fornecidos pela Secretaria de Direitos Humanos (SDH) da Presidência da República, via Disque 100; nos casos registrados pela justiça a partir dos julgamentos, nos divulgados pela mídia e, mais recentemente, no banco de dados criado pela 4ª Delegacia de Repressão à Pedofilia de São Paulo.
Isso ocorre pela ausência de coordenação e de articulação entre os setores do poder público e as entidades da sociedade civil preocupadas com essa questão. Não há investimento em tecnologia para consolidar a base de dados sobre os casos de abuso sexual infantil, gerando um verdadeiro caos no controle das denúncias.
CC: Quais são os impactos decorrentes disso?
HR: Não é possível, por exemplo, afirmar se os casos de pedofilia cresceram ou diminuíram nos últimos anos no Brasil.
HR: Não é possível, por exemplo, afirmar se os casos de pedofilia cresceram ou diminuíram nos últimos anos no Brasil.
Infelizmente, parte considerável da sociedade brasileira parece acolher certas respostas dadas pelo Estado do ponto de vista penal, mas é preciso olhar para a totalidade das ações de outra maneira e buscar formas de proteger as crianças antes que as agressões ocorram. Sem informações precisas e um fluxo racional e consolidado de dados, torna-se impossível elaborar políticas de prevenção, de atendimento e de combate aos abusos sexuais infantis.
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CC: Como devem ser elaboradas as políticas de prevenção?
HR: Não é possível pensar em políticas generalistas, como saúde, educação e segurança, que são essenciais, para lidar com crianças e adolescentes. É preciso, sobretudo, criar políticas específicas voltadas aos problemas enfrentados pelas crianças para garantir a segurança social e econômica das próximas gerações.
HR: Não é possível pensar em políticas generalistas, como saúde, educação e segurança, que são essenciais, para lidar com crianças e adolescentes. É preciso, sobretudo, criar políticas específicas voltadas aos problemas enfrentados pelas crianças para garantir a segurança social e econômica das próximas gerações.
O enfrentamento aos casos de abuso sexual deveria ser tratado como uma dessas políticas específicas. E isso, infelizmente, não vai ocorrer nos próximos anos. Com o congelamento (contingenciamento) das despesas públicas e os cortes nos investimentos nas áreas sociais por 20 anos, as principais vítimas serão as crianças.
Esse tipo de decisão política deve provocar um retrocesso nos avanços conquistados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e pelas convenções internacionais das quais o Brasil é signatário.
CC: Qual a situação do Brasil se comparada a outros países?HR: Segundo levantamentos realizados por organizações internacionais, como Save the Children e Nações Unidas, o Brasil ocupa uma posição intermediária em termos de violência sexual contra crianças. No entanto, os dados não são animadores.
CC: Qual a situação do Brasil se comparada a outros países?HR: Segundo levantamentos realizados por organizações internacionais, como Save the Children e Nações Unidas, o Brasil ocupa uma posição intermediária em termos de violência sexual contra crianças. No entanto, os dados não são animadores.
Estar mais bem posicionado em relação aos países africanos e alguns países asiáticos e latino-americanos pobres não significa que as crianças brasileiras estejam protegidas de abuso sexual. Por causa do tamanho e da riqueza do país, é intolerável que o Brasil tenha o nível de violência sexual infantil que atualmente apresenta.
CC: Como você avalia a atuação das redes de proteção das crianças e adolescentes e da Justiça brasileira no acompanhamento dos casos?HR: No livro A Pedofilia e suas narrativas, fruto da minha tese de doutorado em sociologia pela USP, afirmo que as políticas de proteção às crianças e aos adolescentes têm raízes históricas no Brasil.
A assistência à infância está ligada ao processo de institucionalização das crianças por parte do Estado brasileiro, cuja preocupação, desde o século XIX, girou em torno de crianças de famílias pobres. Durante décadas, as práticas de atendimento à infância foram relativamente as mesmas: encaminhar crianças abandonadas e delinquentes às instituições fechadas de internação.
Com o ECA, em 1990, o Estado reconhece, por meio de lei, seu papel na proteção integral à infância e a criança como sujeito de direitos. O estatuto instituiu uma série de dispositivos, visando protege-la integralmente. Entre eles, destaca-se o Conselho Tutelar como órgão executor de funções públicas responsáveis por zelar pelos direitos da criança e do adolescente em cada município, composto por pessoas representativas da sociedade civil da própria região.
A justiça brasileira (incluindo o Ministério Público) deveria ocupar um papel de protagonismo, aplicando leis e promovendo a fiscalização do funcionamento efetivo das políticas públicas descritas no ECA.
No entanto, seu foco ainda é criminal, quando deveria haver um investimento no sistema de proteção social (em diversas áreas, como saúde, educação e Justiça) em desenvolver métodos de investigação para identificar e diagnosticar o problema, além de sugerir tratamentos às vítimas e também aos pedófilos antes que os abusos ocorram.
Portanto, cabe ao sistema de justiça, incluindo a polícia, investigar os casos, julgar e punir os agressores de acordo com a lei. Cabe ao sistema de saúde, principalmente aos médicos psiquiatras, realizar o diagnóstico correto dos casos e encaminhar o tratamento adequado para cada caso.
E aos dois sistemas em conjunto monitorar as ações dos indivíduos que apresentam esse tipo de transtorno, que tenha ou não cometido algum crime, para proteger as crianças de possíveis abusos.
CC: Como você avalia as políticas públicas brasileiras voltadas ao tema? São eficientes?
HR: Não há efetivamente políticas públicas específicas voltadas ao enfrentamento dos casos de violência sexual infantil no Brasil. Há casos isolados, frutos de políticas de governos nos três níveis de poder, municipal, estadual e federal. Mas não há um plano estratégico de longo prazo coordenado pelo Estado com envolvimento da sociedade social.
HR: Não há efetivamente políticas públicas específicas voltadas ao enfrentamento dos casos de violência sexual infantil no Brasil. Há casos isolados, frutos de políticas de governos nos três níveis de poder, municipal, estadual e federal. Mas não há um plano estratégico de longo prazo coordenado pelo Estado com envolvimento da sociedade social.
Por exemplo, se observarmos as ações da Polícia Federal e da 4ª Delegacia de Repressão à Pedofilia de São Paulo, o foco está na apreensão de material de pornografia infantil. Encontramos no Brasil ações policiais e legislativas de caráter paliativo que buscam combater o abuso sexual infantil por meio de apreensão de computadores de usuários de pornografia infantil. Isso é importante porque o material pornográfico é fruto de abuso sexual, mas não é o suficiente.
Não há políticas públicas estratégicas voltadas à prevenção e ao atendimento das crianças vítimas de abuso. Há muita ênfase no adulto abusador e pouco investimento nas crianças vítimas de abuso, que são as mais prejudicadas. É interessante observar que o abuso sexual infantil representa um tipo de crime que a sociedade brasileira abomina em abstrato, mas o tolera na realidade.
Aparentemente, tolera-se o abuso sexual infantil porque a falta de denúncia e o silêncio são as práticas mais adotadas. E, apesar de a sociedade condenar teoricamente o abuso sexual infantil, a resposta a cada caso depende muito de quem está sendo acusado e de quem foi abusado. Em muitas circunstâncias, é mais fácil negar o que aconteceu e culpar a própria vítima pelo abuso.
CC: Quais desafios precisam ser superados?HR: Na legislação brasileira não existe, nominalmente, o crime de pedofilia, mas há um esforço por parte de alguns políticos e operadores do direito em qualificar a materialidade do ato, uma vez que fantasia não é crime. No livro A Pedofilia e suas narrativas, afirmo que o processo de criminalização da pedofilia no Brasil é um fenômeno recente, ainda em curso, que ocorreu no país na virada do século XX para o século XXI.
A instalação da CPI da Pedofilia no Senado em 2008 – e seus resultados – pode ser considerada a ocasião, digamos, de calcificação da categoria pedofilia e, consequentemente, do sujeito pedófilo como criminoso, ou pelo menos a tentativa de fazê-lo. A pedofilia, até então entendida como categoria médico-psiquiátrica, ou um tipo de conduta sexual desviante e moralmente reprovável, passa a ter tratamento jurídico-criminal amparado por arsenal de leis. É a partir desse momento crucial que o Estado se empenha em monopolizar a categoria pedofilia.
Podemos dizer que legislação, leis e aparatos legais não são problema no Brasil, que parece estar bem amparado juridicamente. Por esse motivo, acreditamos que o processo recente de criminalização da pedofilia tem outra natureza.
O Estado brasileiro claramente optou por privilegiar uma política de “caça aos pedófilos”, insistindo na prática de endurecimento das leis e no aumento das penas, em vez de garantir políticas públicas e ações integradas que visassem atender às vítimas de agressão sexual, melhorar as condições de vida das crianças e inibir a ação de possíveis agressores. Os maiores desafios estão em defender as crianças de qualquer forma de abuso. Mas isso não parece ser uma preocupação no país atualmente.
Fonte:https://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-combate-ao-abuso-e-a-exploracao-de-criancas-e-as-feridas-invisiveis
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