'Orvil', livro secreto da ditadura, inspira guerra cultural de Bolsonaro
Pesquisador aponta Obra escrita ao fim do regime militar e vetada por Sarney como um dos pilares do bolsonarismo
SÃO PAULO
Esta é a história de uma obra que esteve oculta. Seu título oficial é “O Livro Negro do Terrorismo no Brasil”, mas é conhecida mesmo como “Orvil” —livro de trás para a frente.
De trás para a frente porque é o reverso de “Brasil Nunca Mais”, publicação que há mais de 30 anos denunciou os crimes da ditadura, com torturas, mortes e desaparecimentos, a partir de processos da Justiça Militar.
Urdido em segredo durante três anos, sob encomenda do então ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, o “Orvil” foi a resposta da caserna, acusando crimes e conspirações da esquerda e suas tentativas de transformar o país em uma China tropical. Quando ficou pronto, José Sarney, presidente à época, vetou que viesse a público.
Mas isso não impediu que, nas últimas três décadas, primeiro circulando em cópias xerocadas, suas ideias fossem eclodindo na política brasileira —e viessem desabrochar agora no governo Bolsonaro, traçando as diretrizes de sua guerra cultural.
Quem faz a relação é João Cezar de Castro Rocha, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e um dos principais críticos literários em atividade no país. Ele tem se dedicado a estudar a guerra cultural bolsonarista, para um livro que deve publicar em junho, pela editora Caminhos.
Castro Rocha demonstra que a narrativa do “Orvil” é um dos pilares da tática política de Bolsonaro de acusar e combater uma suposta conspiração da esquerda para tomar o poder, desta vez pela via da cultura, sem pegar em armas.
A novidade é o aspecto essencialmente brasileiro na guerra cultural bolsonarista. Normalmente, se acredita que essa ideia tenha chegado aqui depois de 2013, importada dos Estados Unidos com décadas de atraso. Na verdade, era um veio subterrâneo. O “Orvil” começa a ser produzido três anos antes das guerras culturais nos Estados Unidos.
O que o livro faz, em vez de só apontar crimes da esquerda, é recontar a história do Brasil através das tentativas de tomada do poder dos comunistas. É uma narrativa que começa em 1922, com a fundação do Partido Comunista no país, e passa por diversos momentos.
Não acaba em 1974, ano em que a Guerrilha do Araguaia é derrotada, como seria de se supor. Naquele ano, diz o “Orvil”, começa a quarta tentativa, a mais perigosa, que ainda está em curso —o domínio das instituições culturais.
O relatório usa as expressões “trabalho de massas” e “trabalho psicológico”, denuncia um suposto uso de propaganda, agitação e infiltração pela esquerda, inclusive apelando ao sistema de educação. “Os donos da opinião pública determinam muito mais os acontecimentos do que os donos das fábricas ou os chefes militares”, diz o texto.
“Para muita gente, a direita se reorganizou no momento do impeachment. Mas o que ocorre ali é a eclosão de um movimento que se preparava há duas décadas e nós decidimos ignorar”, diz Castro Rocha.
Por mais de 20 anos, o "Orvil" existiu apenas como uma lenda da qual se falava à boca pequena entre movimentos de extrema direita e ex-membros do aparelho repressivo.
Seu conteúdo só foi revelado em 2009, pelo jornalista Lucas Figueiredo, que recebeu uma cópia de um general, em “Olho por Olho - Os Livros Secretos da Ditadura” (Record).
“Havia não mais do que 15 cópias. Houve um pacto de circular o livro entre a extrema-direita militar e civil. O ‘Orvil’ era uma espécie de Santo Graal desses caras”, diz Figueiredo.“Esse inimigo perigoso do comunismo que aparece no livro é claramente um trauma de 1935 [ano da Intentona Comunista], que eles vão alimentando como uma paranoia de uma forma ardilosa. É como se o país tivesse milhares de terroristas prontos a transformar isso aqui numa Albânia.”
Como não era mais segredo, a obra com quase mil páginas foi publicada oficialmente em 2012, pela editora Schoba, e hoje pode ser encontrada facilmente na internet. Em vídeo de 2015, Olavo de Carvalho mostra sua edição a agradece a família Bolsonaro pelo presente.
O "Orvil" traz a mesma narrativa que aparecem em documentários produzidos, por exemplo, pela produtora de direita Brasil Paralelo. Segundo tais produções, os militares venceram a guerra das armas, mas não a dos livros.
Castro Rocha aponta outros pilares na estratégia de Bolsonaro. Um deles é a adaptação da doutrina de segurança nacional, que previa o combate ao inimigo externo —o comunismo—, mas traduzida agora para tempos democráticos.
“Hoje eles não podem eliminar o inimigo fisicamente. Por isso a guerra cultural assumiu a tarefa de destruir as instituições que fariam parte dessa quarta tentativa de tomada do poder pela esquerda —a cultura, o meio ambiente e a universidade”, diz o crítico literário.
Daí iniciativas, por exemplo, como as do Ministério da Educação de cortar bolsas de iniciação científica para as humanidades.
O outro pilar seria uma “retórica do ódio” desenvolvida por Olavo de Carvalho. Castro Rocha, que foi orientador de ex-alunos do guru da direita, diz que está lendo a obra do autor de forma etnográfica —acha uma armadilha perder tempo tentando contestá-la.
“O Olavo criou um sistema de crenças que casa com o ‘Orvil’. Ele fornece uma linguagem comum, uma visão de mundo autocentrada que é impermeável a contestações. É bem característico de um sistema que tem aspectos religiosos.”
Para o autor, tal retórica pressupõe que não se reconheça a legitimidade dos oponentes. Daí o uso da trollagem, palavrões, sofismas e xingamentos colegiais.
Mas o crítico literário aponta que a sacada do bolsonarismo em apostar na guerra cultural é também uma armadilha que criou para si.
“Sem guerra cultural não existe bolsonarismo, porque sem ela não há inimigo a ser sacrificado em mecanismos de bode expiatório. Mas com guerra cultural não há governo. Você não administra nem a sua casa sem dados objetivos.”
Por isso, o pesquisador acredita que a nova direita tende à desagregação. O risco é que, quando a guerra cultural entrar em colapso, a violência que estava confinada nas redes parta para as ruas.
O livro secreto da ditadura
qui, 28/05/09
por Luciano Trigo |
categoria Todas
Está para chegar às livrarias uma pesquisa que promete abrir velhas feridas e reacender o debate sobre a ditadura: Olho por olho, do premiado jornalista mineiro Lucas Figueiredo (Record, 210 pgs.R$38). Também autor dos livros-reportagem Morcegos negros, Ministério do Silencio e O operador , Lucas agora revela os bastidores de uma longa mas pouco conhecida batalha travada nos últimos anos da ditadura e nos primeiros anos da abertura – uma batalha entre dois livros. De um lado, Brasil: Nunca Mais, que se tornou a Bíblia sobre a tortura praticada pelas Forças Armadas, fruto do empenho de dezenas de pesquidores que investigaram mais de 700 processos da Justiça Militar, de 1964 a 1979; de outro, um livro de quase mil páginas, a resposta que nunca chegou a ser publicada, embora tenha mobilizado muita gente: Orvil, ou As tentivas de tomada do poder.
Coordenado por Dom Paulo Evaristo Arns, Brasil, Nunca Mais (Vozes, 312 pgs.R$50) esgotou quase 40 edições e continua vendendo; já de Orvil só se conhece a existência de 15 exemplares artesanais, que só circularam pelas mãos de um grupo fechado de miltares. Em 2007, porém, um deles chegou às mãos de Lucas Figueiredo, que revelou uma pequena parte de seu conteúdo numa reportagem publicada no Estado de Minas. De lá para cá, o jornalista mergulhou na 966 páginas em dois tomos da obra e apurou as circunstâncias de sua confecção. O resultado de sua meticulosa investigação, que pode desagradar tanto à esquerda quanto à direita, está em Olho por olho. Se, por um lado, o livro mostra a engrenagem cruel da repressão, resgata também episódios desagradáveis para a memória da luta armada. Mas Lucas Figueiredo vai além: mostra, ainda, o que foram os seis anos de tensão e perigo na elaboração sigilosa de Brasil: Nunca Mais, ainda sob o regime militar.
A ordem para que os órgãos de segurança e informação realizassem o Projeto Orvil (“livro”, ao contário) partiu do General Leônidas Pires Gonçalves, quando era Ministro do Exército do Governo Sarney, em 1986. Seu objetivo era deixar registrado para História a versão dos militares sobre a guerra suja travada contra os grupos armados de esquerda, numa espécie de resposta a Brasil: Nunca Mais, lançado um ano antes. O livro ficou pronto em 1988, mas, naquela altura, o General tinha decidido não mais publicá-lo. Em 2000, o grupo de direita Ternuma “Terrorismo Nunca Mais” divulgou 40 páginas da obra, então denominada O Livro Negro do Terrorismo no Brasil.
Finalmente, em 2007, apareceu a cópia do Estado de Minas. Contudo, a insatisfação de alguns militares da reserva com o tom da reportagem de Lucas Figueiredo acabou levando à publicação, ainda que pouquíssmo divulgada e quase confidencial, da íntegra do Orvil na Internet, facilmente acessível pra quem souber procurar – os primeiros parágrafos do documento outrora hiper-sigiloso são reproduzidos abaixo. Por sua importância como documento histórico - o Orvil revela, por exemplo, que os militares detinham informações que negavam ter sobre mortos e desaparecidos; e explicita o envolvimento do Exército na morte de duas dúzias de presos políticos – e até para satisfazer a justa revindicação de que sejam abertos o “arquivos da ditadura”, convém que o texto seja amplamente lido e discutido. São citados no Orvil ceca de 1.700 nomes, acusados de envolvimento com a “subversão” – entre eles, é claro, muitos políticos em plena atividade hoje, em vários partidos. Casos como o seqüestro do Embaixador Charles Elbrick e a caçada a Carlos Lamarca ocupam várias páginas, escritas sob a ótica dos militares.
Os primeiros parágrafos do Orvil:
No final dos anos sessenta, diversas organizações clandestinas de corte comunista iniciaram uma nova tentativa de tomada do poder, desta vez por meio da luta armada. Ao iniciarmos as pesquisas para este trabalho, nosso objetivo era estudar os fatos que compõem esse episódio entre os anos de 1967 e 1973. Pelo conhecimento que tínhamos, tal período enquadrava os anos em que a luta havia sido mais acirrada e violenta.
Para a compreensão dessa luta, foram suscitadas muitas perguntas: Como se formaram? Qual a inspiração ideológica? Quais os objetivos das organizações subversivas nela empenhadas? Qual o caráter da revolução que pretendiam fazer? Quais as experiências externas que procuraram apreender? Quais os modelos e métodos revolucionários que tentaram transplantar para nosso país?
Como se estruturaram? Como se compunha sua infra-estrutura de apoio, de inteligência, etc? Em que segmentos sociais e de que forma recrutavam seus quadros e como os formavam no País e no exterior? O que buscavam ao perpetrar assaltos, seqüestros, assassinatos e outras formas cruentas de terrorismo? Que objetivos alcançaram com essas ações?
As indagações, porém, não se esgotavam em torno dessas organizações clandestinas. Envolviam o próprio Estado e o sistema político vigente. O nível que as ações terroristas alcançaram colocava em cheque o monopólio da força armada organizada? Tirava do sistema político a sua característica de universalidade e a qualidade final de sua força? O seu combate exigia o envolvimento das Forças Armadas? Era imprescindível que provocasse a restrição da liberdade e que se suprimisse do público as informações a que tem direito numa sociedade democrática?
É sabido que as ações empreendidas acabaram por envolver as Forças Armadas, e a esse respeito outras questões tinham que ser levantadas porque fazem parte da luta a ser examinada. Estavam as Forças Armadas preparadas e estruturadas para esse combate insólito? Tiveram que provocar alterações na sua estrutura, na instrução, nos seus efetivos, na conduta das operacões? Que sacrifícios lhes foram impostos? Como atuaram? Venceram a luta? Mas o fizeram em todos os seus aspectos?
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