O Centro de São Paulo na sexta-feira, antes do aumento da
rigidez nas medidas para tentar conter a disseminação do novo coronavírus.
Os desafios do Brasil aquém e
além da pandemia
Ou se aceita que a escolha de gastar para
salvar vidas requer abrir mão do que se reconhece como sendo fiscalmente
responsável, ou se permite o alinhamento com bolsonaristas
Os desafios a que
me refiro no título deste artigo não são nem os da saúde pública, que
são imensos, nem os econômicos,
também enormes. Em momento sombrio da história brasileira, dou um passo para
trás em um esforço para perceber mais claramente os desafios que a sociedade
brasileira já havia criado para si com a eleição de Bolsonaro em 2018 e que
foram agravados pela pandemia. Podemos dividir o país em dois campos, como é
mais habitual: de um lado, figuram os bolsonaristas; de outro os que a elem se
opõem. Mas vale tentar ir além do binarismo, para contemplar nuances que já
eram visíveis em 2018 e ficaram mais explícitas no decorrer do último ano.
Há os
bolsonaristas. Eles possuem uma linguagem própria, e este elemento merece
atenção porque o bolsonarismo se define menos por uma ideologia do que por
estratégias de comunicação que ou apresentam a violência ou repõem a sua
potencialidade. Não menos importante, o bolsonarismo é antipluralista. É
antipluralista em relação à vida social, como fica claro quando contemplamos a
sua relação com minorias; na política, como podemos ver, sugere a ilegitimidade
de seus adversários, desde a sua perspectiva; nos valores, o que notamos quando
atentamos para os seus operadores (”cidadão de bem”, “humanos direitos”, “a
família brasileira”) e no plano das ideias. Falas bolsonaristas, como são as do presidente,
deixam ver práticas patriarcais longamente constituídas. Para ilustrar com uma
manifestação recente: contestando medidas que governadores tentam implementar,
o presidente afirmou em uma mídia social que “atividade social é toda aquela
necessária para um chefe de família levar o pão dentro de casa”. O viés do
bolsonarismo também é nitidamente colonialista, como se nota em sua relação com povos indígenas,
com esboços de defesa ou justificação do desmatamento em nome do “desenvolvimento”.
Se o bolsonarismo é
antipluralista, o antibolsonarismo seria pluralista. compreende o antirracismo,
o feminismo e sua luta mais que secular no Brasil pelos direitos das mulheres,
a igualdade de todos os seres independentemente de gênero ou orientação sexual,
o rechaço à desigualdade e a contestação de uma democracia universal na forma,
mas restrita na vida, em que negros e pobres são tratados como não-cidadãos, ou
cidadãos de segunda classe. O pluralismo percebe o traço autoritário na operação
de uma lógica absolutista e que instrumentaliza a razão em causa própria. A
razão assim instrumentalizada é cerceada. Ser pluralista, ao contrário, é
manter-se aberto aos conflitos trazidos pela abertura ao real e os
questionamentos dos pressupostos que a realidade suscita. O pluralismo supõe
uma abertura que é antagônica a tudo o que é estático.
O antagonismo do
pluralismo ao que é estático ficou em evidência maior na pandemia, um evento cujo ineditismo não
permite que permaneçamos apegados a conhecimentos estabelecidos e formas de
ordenar o mundo informadas por experiências passadas. A pandemia fez ver. Fez
ver o tamanho da desigualdade, a inadequação da política econômica, o desconhecimento
científico da população, o sofrimento, a vida e a morte. Esses aspectos da
realidade brasileira ficaram tão visíveis, tão despidos de construções e
fantasias, que o inaceitável ―para o campo pluralista― passou a ser permitir
que o mundo não fosse visto por determinados grupos da sociedade.
Mas, nas fraturas
da sociedade brasileira, há ainda outro grupo: aquele formado por pessoas que
se declaram antibolsonaristas, mas, ao encontro com o real, não resistem a se
agarrar a um conhecimento estabelecido, mantendo intactos os seus pressupostos,
sem reexaminá-los. É o que chamo, hoje, de relação absolutista com a
racionalidade, que faz certa razão aparecer como antipluralista. Esses atores
políticos percebem a importância das causas do pluralismo e as abraçam. Porém,
o antipluralismo embutido na forma como entendem a relação de especialistas com
o público torna algumas de suas práticas compatíveis com o bolsonarismo. Sendo
preciso dar-lhes um nome, proponho chamá-los de “anti-anti”.
Eles estão
presentes na economia, mas não só: os antibolsonaristas e antipluralistas
aparecem à luz do público, eventualmente. São pessoas bem intencionadas, de
diferentes gerações, que defendem causas a meu ver justas, tais como a renda
básica, a redução da pobreza e das desigualdades, mas que ao mesmo tempo não se
dão conta de que defendê-las pode implicar abrir mão de certas crenças e
pressupostos. Na economia, o pressuposto mais hostil a dúvidas, e proveniente
do conhecimento estabelecido a partir de experiências passadas, é o de que a
responsabilidade fiscal é um valor inegociável, ainda que a realidade o exija,
em uma crise humanitária e com um governo que atua por ação e omissão para
deixar morrer e fazer morrer. No mundo dos anti-anti, a defesa da igualdade de
acesso e o inevitável choque com aquilo que consideram fiscalmente responsável
estão em planos distintos, correm em paralelo. Mas a realidade não permite que
se opere em planos paralelos. Ao contrário, ela coloca esses planos em rota de
colisão: ou se aceita que a escolha de gastar para salvar vidas requer abrir
mão do que se reconhece como sendo fiscalmente responsável, ou se permite o
alinhamento com bolsonaristas.
Evidente na
economia, tal absolutismo é difuso. No jornalismo opinativo ―nos editoriais ou
nas colunas de opinião― a construção de um mundo que não tem relação com a
realidade está igualmente presente. Constroem-se argumentos para sustentar essa
ou aquela tese com base em uma dissociação da realidade. Temas que tentam
reconstituir uma realidade que deixou de ser com a pandemia dão a tônica à
representatividade dos veículos de comunicação. Aceita-se de bom grado o
absolutismo econômico, científico, ou seja lá qual for, ainda que se manifeste
uma opinião contra o Governo, contra o presidente da República. A imprensa que
se permite tratar o mundo real com demasiada maleabilidade, ou negligenciá-lo,
para habitar esse outro construído valida o bolsonarismo sem querer fazê-lo: é
anti-anti pelo que deixa ver, pelo que faz não ver.
Está posta, assim,
a tragédia do Brasil atual: atores importantes da sociedade não enxergam, em
suas construções e atitudes, pontes para a perpetuação do antipluralismo
bolsonarista. Esses grupos preferem desqualificar aqueles que estão com os pés
na realidade, tentando dar conta de um mundo repleto de fraturas, de
descontinuidades, que requer novas ideias e o livre pensar, ou o que Hannah Arendt chamou
de pensar sem corrimão. Preferem tudo isso a enxergar insuficiências e
inadequações do conhecimento que nos foi legado. No limite, e nós nos
encontramos em alguns limites, tornam-se facilitadores, conscientes ou
desavisados, da franca decadência moral que marca um país que se recusa a
chorar pelos seus mortos, seus doentes, seus destituídos.
Monica
de Bolle é economista, PhD pela London
School of Economics e especializada em medicina pela Harvard Medical School. É
professora da Universidade Johns Hopkins, pesquisadora-Sênior do Peterson
Institute for International Economics e mestranda em Imunologia e Microbiologia
na Georgetown University.
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