Como ciência e povos tradicionais podem se unir por metas climáticas
Especialista da TNC Brasil defende que a ciência ocidental não é suficiente para solucionar problemas socioambientais e explica papel dos conhecimentos de povos indígenas e comunidades locais
Por Edenise Garcia*
05/11/2023 12h04 Atualizado há 6 horas
Num momento em que o alcance de metas globais de mitigação das mudanças climáticas, de proteção da biodiversidade e dos objetivos de desenvolvimento sustentável é altamente desafiador, organizações de todo o mundo se mobilizam na busca de um maior entendimento e monitoramento de tendências, bem como de mecanismos para evitar impactos negativos e sinérgicos crescentes.
No entanto, prevalece ainda uma visão ocidental de governança e de abordagem científica que não está sendo suficiente para endereçar a complexidade de problemas que estão conectados em múltiplas escalas, do local ao global.
O Quadro Global para a Biodiversidade de Kumming-Montreal, adotado na 15ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre a Diversidade Biológica (CDB) em dezembro de 2022, estabeleceu um conjunto ambicioso de objetivos e metas destinados a parar e reverter a perda de biodiversidade.
A extensão dos ecossistemas naturais foi selecionada como um dos indicadores principais em relação aos quais os países membros devem agora reportar o progresso no âmbito desse quadro. Foi estabelecida a meta global da conservação e gestão efetiva de pelo menos 30% das terras, águas interiores, áreas costeiras e oceanos, sobretudo de áreas importantes para a biodiversidade e o funcionamento de serviços dos ecossistemas. Até o momento, apenas 17% dos ambientes terrestres e 10% dos mares estão protegidos.
Em termos de mudanças climáticas, ainda prevalece o objetivo do Acordo de Paris, de 2015, de limitar o aquecimento global a 1,5 ºC em relação aos níveis pré-industriais, embora recentes e consecutivos recordes de temperatura média mensal global sejam indícios de que essa meta está cada vez mais distante.
Na agenda 2030 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), a situação não é melhor. Dos 140 objetivos definidos, apenas a metade apresentou algum progresso, sendo que cerca de 15% retrocederam em relação a anos anteriores.
Nessa agenda, a dimensão ambiental está presente em vários objetivos (ODS 2, 6, 13, 14, 15) e inclui biodiversidade e ecossistemas, gestão de recursos naturais, alterações climáticas, questões relacionadas a águas continentais e marinhas, gestão ambientalmente saudável de produtos químicos e resíduos, entre outros tópicos.
Está claro que a conservação de biodiversidade e seus habitats, a mitigação das alterações climáticas, bem como o alcance os ODS estão inextricavelmente interligados. Os impactos negativos da perda da biodiversidade e das mudanças nos padrões climáticos colocam em risco a segurança alimentar e hídrica, a saúde, o bem-estar e a própria estabilidade de populações inteiras, sobretudo as mais pobres e vulneráveis.
Portanto, nenhuma dessas agendas pode ser abordada independentemente da outra; é necessário um conjunto de ações conectadas, assim como a integração de abordagens e perspectivas multidimensionais.
União de saberes
A fonte dominante de dados ainda é a literatura acadêmica baseada na ciência ocidental. A inteligência artificial, associada ao “big data”, ao facilitar a combinação de diferentes abordagens em larga escala espacial e curto tempo, desponta como a grande via para a análise, compreensão e monitoramento de níveis mais elevados de complexidade socioambiental.
Técnicas de aprendizagem automática (“machine learning” – ML) e inteligência artificial (IA), como redes neurais ou métodos de aprendizagem profunda, podem, por exemplo, permitir um melhor monitoramento da biodiversidade e dos ecossistemas com conjuntos de dados de alta resolução baseados em satélite para melhor apoiar a elaboração de políticas públicas.
Apesar dos avanços tecnológicos, a compreensão de sistemas complexos e interligados continua a ser um grande desafio para o futuro e é preciso ir além da perspectiva científica ocidental para preencher lacunas de conhecimento. Nesse contexto, o conhecimento dos povos indígenas e das comunidades locais (PICLs), que desempenham um papel crucial na salvaguarda da biodiversidade e no combate às alterações climáticas, é essencial, embora nem sempre devidamente reconhecido fora de seu contexto local.
Povos de todo o mundo desenvolveram diferentes visões da natureza ao longo da história humana para compreender, interpretar e sobreviver em seus respectivos ambientes biofísicos. Por exemplo, o clima glacial e a ausência de vegetação levaram os inuítes a desenvolverem práticas específicas adaptadas às condições do norte do Canadá, do Alasca e da Groelândia.
Práticas muito diferentes daquelas de indígenas de regiões tropicais da Floresta Amazônica ou das savanas africanas, ou de ribeirinhos que dependem das águas para praticamente todas as suas necessidades. A gestão diferenciada do ambiente constitui parte integrante da identidade cultural e da integridade social de muitas populações indígenas e tradicionais.
Ao mesmo tempo, o conhecimento de condições específicas incorpora uma riqueza de aprendizado e experiência da natureza adquirida ao longo de dezenas a milhares de anos e transmitida por gerações. Na prática científica de PICLs, o ambiente aberto substitui aquele estritamente controlado, como um laboratório, ou altamente simplificado da ciência ocidental, e sua transmissão não é feita por meio de artigos, mas oralmente, em geral.
Como os dados e observações são coletados diretamente pelas próprias comunidades, muitas vezes por meio de mapeamento participativo, eles também orientam a identificação de problemas, como a presença de espécies exóticas invasoras, localização de áreas críticas para a reprodução da biodiversidade, identificação de riscos relacionados ao uso da terra etc. Essas informações subsidiam a concepção de projetos e constituem uma importante ferramenta para priorizar necessidades, formular demandas e proteger direitos específicos ao território e aos recursos naturais.
Os PICLs procuram ativamente aumentar a consciencialização sobre a diversidade biológica e cultural e têm um papel fundamental a desempenhar na realização de agendas globais. No entanto, as oportunidades para a participação dos PICLs nos processos científicos e políticos globais e nacionais têm sido limitadas.
Apesar das discussões cada vez mais presentes nos fóruns globais, na prática ainda há poucos mecanismos eficazes para a participação dos PICLs na preparação de estratégias e planos de ação. Isso inclui apoio institucional e financiamento para o monitoramento ambiental, fortalecimento de canais de comunicação e deslocamento. Com maior suporte e parcerias, muitas das suas contribuições e ações coletivas podem ser ampliadas e informar práticas nacionais e internacionais.
A ciência ocidental e a de PICLs trilham caminhos diferentes para o conhecimento, mas estão enraizadas na mesma realidade. Não há dúvida de que ambas podem ganhar muito ao estabelecerem um diálogo e uma parceria equilibrada e que reconheça PICLs como cientistas especialistas no seu próprio sistema de conhecimento, ao mesmo tempo em que respeite informações tradicionais sensíveis, como a localização de determinados recursos naturais.
*Edenise Garcia é diretora de ciências na The Nature Conservancy (TNC) Brasil.
Fonte:https://revistagalileu.globo.com/colunistas/tnc-brasil/coluna/2023/11/como-ciencia-e-povos-tradicionais-podem-se-unir-por-metas-climaticas.ghtml
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