Entenda o papel dos povos indígenas no combate ao desmatamento da Amazônia
Especialista da TNC Brasil detalha por que é necessário incluir indígenas e seus territórios nas medidas de preservação da Floresta Amazônia
Edenise Garcia*
04/09/2023 12h17 Atualizado há 2 meses
Nos dias 8 e 9 de agosto, ocorreu em Belém a Cúpula da Amazônia, evento que reuniu presidentes e ministros de Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela e culminou com a assinatura da "Declaração de Belém".
Embora o documento final não tenha estabelecido metas ou prazo para zerar o desmatamento, um dos focos do encontro, houve avanços e ênfase na necessidade de proteção dos territórios indígenas, de respeito aos direitos humanos sob as mais diversas formas e promoção de participação social nos processos de tomada de decisões e formulação de políticas públicas que concernem a região.
O reconhecimento do papel dos povos indígenas na salvaguarda dos ecossistemas e no combate às mudanças climáticas tem sido gradual ao longo das últimas conferências internacionais sobre clima e biodiversidade — após anos de insistência dessas comunidades de sua inclusão em agendas estratégicas globais.
Em 2021, a COP26 da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas teve um foco sem precedentes nos direitos à terra dos povos indígenas. Em 2022, a convenção sucessora – a COP27 – e a COP15 das Nações Unidas sobre a Biodiversidade deram continuidade a esse trabalho. Os direitos de comunidades indígenas foram incorporados em muitas das principais metas acordadas na COP15.
Essa atenção particular aos povos indígenas é resultado de vários fatores. Na Amazônia brasileira, boa parte da grande riqueza sociocultural está associada a sua ocupação por mais de 300 etnias, cada uma com cultura, língua e território distintos, que continuam a viver e a se sustentar utilizando produtos florestais e dependendo das florestas para sua sobrevivência.
Há também 113 grupos isolados ou em “isolamento voluntário” contabilizados pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), totalmente dependentes da floresta para sua subsistência e sobrevivência. Segundo dados do censo demográfico do IBGE de 2022, 868 mil indígenas vivem na Amazônia Legal. Apesar do crescimento observado nas últimas décadas, essa população ainda representa apenas 3,3% do número total de habitantes da região.
Devido a essa relação próxima com o meio ambiente, e dependência direta dos recursos naturais, os povos indígenas, assim como comunidades locais — ribeirinhos, quilombolas, extrativistas, entre outros —, são os mais suscetíveis aos impactos de desmatamento, degradação e fragmentação florestais e às mudanças climáticas exacerbadas por essa dinâmica destrutiva de uso da terra. Para além da ameaça a suas terras e recursos, essas comunidades sofrem com a marginalização econômica e política, e ainda com violação de direitos humanos e discriminação.
Por outro lado, essa mesma dependência da floresta faz com que os povos indígenas sejam vitais para a conservação ambiental ao redor do mundo. Por exemplo, as terras indígenas (TIs) ocupam 20% da superfície terrestre, mas abrigam 80% da biodiversidade remanescente global. No Brasil, as TIs cobrem 26,4% da Bacia Amazônica, num total de 114 milhões de hectares, o equivalente a quase a metade do território do estado de São Paulo.
Quando excluídas as massas de água (4 milhões de hectares) e considerada apenas a cobertura de vegetação original, observa-se que 98% da vegetação em TIs encontram-se atualmente intactos. Essa proporção de áreas conservadas é similar à das unidades de conservação, mas muito superior àquela das áreas privadas (61%), distribuídas entre grandes, médios e pequenos imóveis rurais localizados fora de assentamentos agrários, que ocupam conjuntamente uma área de aproximadamente 205 milhões de hectares na Amazônia, sendo 9 milhões cobertos por ambientes aquáticos.
No total, até 2022, mais de 80 milhões de hectares de vegetação nativa foram perdidos em áreas privadas e 2,6 milhões, em TIs. Quando se leva em conta que a cobertura original de vegetação nas áreas privadas era quase duas vezes maior que na TIs, essa perda é 15,6 vezes maior nos imóveis rurais que em terras indígenas.
Apesar do extenso território ainda intacto, os povos originários sofrem com a pressão oriunda das áreas adjacentes ou com a ocupação ilegal de suas terras. As políticas de ocupação que se iniciaram nos anos 1960 provocaram profundas mudanças no bioma amazônico. Agricultores, madeireiros, garimpeiros e grandes empresários rurais trouxeram padrões produtivos em que a floresta é convertida para a monocultura, a pecuária e, em menor escala, mas não menos degradante, para a mineração.
Tudo isso tem sido acompanhado pela expansão de projetos de infraestrutura, incluindo estradas. Um estudo baseado no uso de inteligência artificial detectou 3,46 milhões de km de estradas na Amazônia Legal, sendo 86% delas não oficiais, sobretudo abertas para a extração ilegal de madeira via ramificações que partem de um eixo principal, onde ficam caminhões e maquinário pesado, ou ainda para acesso a áreas de mineração.
Desse total, 280 mil km cortam TIs, territórios quilombolas e UCs de proteção integral ou uso sustentável; uma malha viária que desencadeia transformações importantes no bioma, uma vez que é vetor direto de desmatamento, fragmentação da paisagem e fogo, facilitando atividades ilegais e gerando importantes alterações socioambientais.
Esse tipo de ocupação e expansão negligencia a presença das populações indígenas e seus modos ancestrais de viver e produzir. Também faz com que grande parte dessas populações seja vítima de ações violentas, com ameaças e invasões aos seus territórios, resultantes da expansão da mineração ilegal, disputas por terras e outros recursos naturais. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no Brasil as comunidades indígenas sofreram, proporcionalmente a sua população, cerca de 20% mais violência que gerou homicídios entre 2009 e 2019 do que as não indígenas.
Além disso, o crime organizado tem se mostrado cada vez mais presente na Amazônia, segundo o relatório de 2023 do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, que analisa o impacto desse tipo de ação no desmatamento e na degradação da região. Alguns grupos têm como alvo específico a floresta, traficando madeira e vida selvagem, invadindo territórios indígenas e de populações tradicionais ou subsidiando a mineração ilegal como forma de diversificar suas finanças.
Outros se apossam de terras públicas não destinadas, sobretudo pela conversão de florestas em pastos. Além de servir para a lavagem de dinheiro e ser usada para esconder pistas de pouso clandestinas, a pecuária contribui para as mudanças climáticas, tanto pelo desmatamento quanto pela emissão de metano associada ao rebanho.
Essas atividades acabam afetando as comunidades indígenas, seja pelo impacto ambiental, seja pela violência gerada, ou ambos. A mineração ilegal é um exemplo claro, pois contribui para o desmatamento não só porque as árvores têm de ser derrubadas para extrair os minerais, mas porque têm de ser construídas estradas de acesso, pistas de pouso e outras infraestruturas para acompanhar as operações. Também afeta diretamente a qualidade das águas e pode levar à contaminação de peixes por mercúrio, usado na extração artesanal de ouro, colocando em risco a segurança hídrica e alimentar das comunidades afetadas.
Tudo isso envolto num clima de violência associado à invasão de TIs, o que inviabiliza qualquer tipo de estratégia de conservação, suprimindo o conhecimento prático e os modos de uso produtivo e sustentável dos recursos naturais pelas populações indígenas.
Por essas razões, o desmatamento, a perda de biodiversidade e as mudanças climáticas não podem ser enfrentados sem o envolvimento direto dos indígenas e sem as garantias em relação ao direito originário desses povos sobre seus territórios.
O acesso a mecanismos financeiros e de gestão e a tecnologias de monitoramento, o efetivo envolvimento desses povos em processos de tomada de decisão, além de um processo mais ágil de demarcação e homologação, são imprescindíveis para manter em pé cerca de um quarto da Floresta Amazônica no Brasil.
*Edenise Garcia é diretora de ciências na The Nature Conservancy (TNC) Brasil.
Fonte:https://revistagalileu.globo.com/colunistas/tnc-brasil/coluna/2023/09/entenda-o-papel-dos-povos-indigenas-no-combate-ao-desmatamento-da-amazonia.ghtml
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